Na cozinha do Bar do Careca, no bairro Cachoeirinha, na região noroeste de BH, é o próprio dono quem cria as receitas, escolhe os ingredientes, tempera os pratos e garante o sabor que atravessa gerações. Aos 77 anos, com 52 deles dedicados ao balcão, Orcinio Gonçalves Ferreira, que virou lenda da gastronomia popular será homenageado na edição de 25 anos do Comida di Buteco.
E a celebração é justa: foi ele o primeiro campeão do concurso, no ano de 2000, com um prato que, até então, quase ninguém queria encarar — a língua de boi. “Antes do Comida di Buteco, eu oferecia e o cliente ficava até nervoso. Tinha muito preconceito com dobradinha e língua, por exemplo. Hoje até criança quer comer. Graças ao festival, aquilo se propagou”, conta Careca.
Na época, o bar passava por dificuldades. O movimento era fraco e ele nem sabia qual prato inscrever. Mas, enquanto conversava com os organizadores, um casal entrou e pediu a tal da língua. Pronto. Estava decidido. Com simplicidade e sabor, venceu uma disputa com nomes de peso entre os bares pioneiros.
Depois da vitória, a fama atravessou continentes. “Passei a servir 250 línguas por dia. Vem gente do mundo inteiro: Japão, Rússia, Estados Unidos, Austrália, São Paulo, Rio de Janeiro. Tudo pra comer a língua e o nosso tropeiro. Inclusive, recebo grandes nomes da gastronomia mundial aqui”, diz ele, orgulhoso.
Mesmo sem nunca ter rodado pelos bares da capital — “sou muito caseiro”, confessa —, Careca sabe o tamanho do que ajudou a construir. “O Comida di Buteco ajuda muita gente e, o principal, ajudou a transformar a sociedade. Antes, quem frequentava boteco era malvisto. Hoje, famílias vão juntas, é ponto de encontro, de amizade, de negócio e até de casamento”.
O bar participou do concurso de 2000 a 2013 e, neste ano, volta como convidado de honra, fora da disputa, mas no centro da homenagem. “É uma participação hors-concours. O bar estará presente com toda a sua indumentária, vendendo o petisco original, a tradicional língua de boi, também por R$ 35. É uma forma de homenagear o primeiro campeão”, celebra a cofundadora do Comida di Buteco, Maria Eulália Araújo.
“Me senti muito honrado, muito feliz e realizado. Se eu morrer hoje, tenho certeza que meu nome vai ficar na mente de muita gente que gosta de boteco”, diz Careca, emocionado.
Trajetória
A vida toda Careca esteve ali, por trás do balcão. Criou quatro filhos sozinho, depois da morte da esposa. “Fui pai e mãe. Criei meus filhos com o sustento do bar. Hoje estão todos bem, graças a Deus. Um dos meus filhos trabalha comigo, resolve tudo, mas não lava um copo”, brinca.
Vindo de um tempo em que boteco era espaço de resistência e simplicidade, o Careca virou personagem fundamental na história do Comida di Buteco.
Uma história feita de sabor, suor, garfadas e memórias. E ele segue ali, firme, servindo língua e amor pra quem chegar. “Nada do que conquistei foi ganhado de mão beijada. Foi adquirido com respeito, honestidade, e humildade”, finaliza.