O TEMPO DADOS

Mais de 7 mil candidatos mudaram declaração de raça em Minas Gerais

Nova cota vale já nestas Eleições 2020, mas não explica totalmente o fenômeno

Por Cristiano Martins
Publicado em 12 de outubro de 2020 | 06:00
 
 
 
normal

 

Mais de um quarto dos candidatos registrados para as Eleições 2020 em Minas Gerais mudaram a autodeclaração de cor ou raça na comparação com o pleito de 2016. São 7.224 casos, ou 27% dentre os 26.385 concorrentes que voltam a participar da disputa neste ano.

De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) analisados por O TEMPO, 2.949 postulantes aos cargos de prefeito, vice-prefeito ou vereador trocaram os cadastros de branco para pardo ou preto (41% das alterações), enquanto 2.465 fizeram o caminho oposto (34%).

Outros 1.619 foram de pardo para preto ou vice-versa (6%). Essa transição não tem nenhum efeito prático em relação à nova regra de cotas, pois a soma desses dois grupos representa o total da população negra, na definição dos órgãos oficiais.

A novidade neste ano é a distribuição proporcional do fundo eleitoral e do tempo de propaganda entre os grupos raciais dentro de cada legenda. Nas siglas com uma eventual competição maior entre os candidatos negros, portanto, os concorrentes declarados brancos também poderiam ser beneficiados.

 

 

Na avaliação do cientista político Cristiano Rodrigues, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as hipóteses são diversas e incluem a possibilidade de fraudes. Segundo ele, porém, os dados indicam que correções, erros e preenchimento dos registros por terceiros pesaram muito mais do que possíveis tentativas de burlar a norma. O crescente debate público sobre racismo e representatividade, bem como as reações negacionistas ao tema, também podem ter infuenciado.

A promulgação da cota, no último dia 24 de setembro, se deu sob críticas da maioria dos líderes partidários, devido ao prazo curto para a aplicação. Mesmo com todo o debate sobre a subjetividade da classificação individual e a dificuldade de adoção da regra já em 2020, a Justiça Eleitoral poderá aplicar sanções.

“Eventuais fraudes na autodeclaração ou na distribuição dos recursos serão acompanhadas no julgamento dos registros e das prestações de contas”, informa em nota o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-MG).

Diante da falta de uma regulamentação específica, o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, pediu “boa fé” aos dirigentes. “Não há previsão de pena pelo descumprimento da cota. Caberá ao juiz responsável decidir a sanção a ser aplicada. Quanto à autodeclaração de raça ou cor, esse controle cabe aos partidos”, acrescenta o TRE-MG.

Conforme O TEMPO revelou no sábado (10), o número de candidatos negros superou o total de concorrentes brancos nestas Eleições 2020 em Minas. É a primeira vez que isso acontece desde que o TSE passou a coletar a autodeclaração de raça e cor, em 2014.

 

De branco para preto

Alguns candidatos que alteraram autodeclaração na comparação com 2016:

 

Candidatos relatam erros e divergem sobre regra

Entre os postulantes a prefeito, foram identificadas 321 mudanças na autodeclaração de raça ou cor, a maioria delas de branco para pardo (157) ou vice-versa (119).

Em Belo Horizonte, Wanderson Rocha (PTSU) foi o único dos 15 concorrentes a alterar o registro – de pardo para preto – entre aqueles que também participaram do pleito anterior. 

“Para nós, na verdade, não faz muita diferença, pois a composição racial é uma reivindicação que sempre existiu no PSTU e o nosso partido tem maioria negra em Minas (64%). Nacionalmente, está em primeiro lugar”, enfatiza.

Em Contagem, na região metropolitana, três concorrentes à Prefeitura alteraram a declaração. Maria Lúcia Guedes (PV) e Yvair Soalheiro (PDT) mudaram de pardo para branco, e Kaká Menezes (Rede), de branco para pardo.

“Talvez em algum momento eu tenha preenchido em dúvida, e depois mudado por achar que minha pele não seja assim tão clara. Mas realmente não me atentei para isso, não é algo que eu tenha observado antes e nem foi nada proposital”, afirma Menezes, único dos três a responder o contato da reportagem. Ele também destaca que a Rede registra maioria negra entre os candidatos em Minas (61,7%). 

Para Menezes, a nova cota e o aumento das candidaturas negras merecem comemoração. “Esse passivo é uma realidade que temos no Brasil há várias gerações. Essa decisão do TSE e do STF humaniza e enobrece a nossa Justiça Eleitoral. É um marco, pois, estatisticamente, os pretos e pardos são maioria e são as pessoas que mais sofrem no Brasil. E, portanto, precisam ter garantido o acesso à política institucional para defender seus direitos. A nossa sociedade será mais justa quando essa questão for equacionada”, opina.

Entre os candidatos a vereador, houve 6.641 alterações. Desde a semana passada, a reportagem de O TEMPO procurou dezenas de postulantes cujas mudanças chamaram mais atenção, mas a grande maioria não respondeu ou não quis comentar o assunto.

O único a se manifestar sobre o tema até o momento desta publicação foi o advogado Sérgio Aparecido Gomes, o Serginho da Soseg (PTB). O candidato à Câmara de São Sebastião do Paraíso, no Sul de Minas, se declarou branco em 2016 e preto neste ano. Ele afirma que houve um equívoco e, inclusive, se diz contrário à cota racial nas eleições.

“A declaração, obviamente, está errada. Quem preencheu foi o contador, então provavelmente ele errou, e eu nem tinha visto. Não sou preto, mas também não sou branco, sou moreno. Vou pedir a correção”, esclarece Gomes. “Entendo que o princípio é democrático e deve haver direitos iguais para todo mundo”, finaliza o candidato.

 

De preto para branco

Alguns candidatos que alteraram autodeclaração na comparação com 2016:

 

Análise

Para o cientista político Cristiano Rodrigues (UFMG), a aprovação muito recente da cota é um dos fatores que limita a quantidade de eventuais fraudes. “Os partidos e candidatos já precisariam estar muito atentos antes para que tenham decidido fraudar deliberadamente, porque àquela altura a maioria das composições e agendas para esta eleição já estavam fechadas”, pondera o especialista.

O professor acredita que o total de alterações é relativamente baixo no universo das 80.740 candidaturas apresentadas neste ano em Minas. “Até há pouco tempo não havia nenhum incentivo para se preenchesse essa informação de maneira adequada. Muitas vezes, os formulários não são preenchidos pelos próprios candidatos, mas por outras pessoas ou pelos partidos. Então, muitos casos podem ser meramente erro ou uma readequação de preenchimento. Para pensarmos em uma ação coordenada de fraude, teria de haver um número mais elevado”, acrescenta.

Por outro lado, o professor explica que algumas combinações de fatores podem, sim, apontar uma maior probabilidade de má fé. “Um partido que tenha um número baixo de candidatos negros, que tenha apresentado poucos candidatos negros em 2016 e registre uma alteração significativa nas declarações, isso vai indicar que pode haver fraude. Pois nesses casos a competição é alta entre os candidatos brancos. É o que nós vemos nas universidades. Em cursos de baixo prestígio, dificilmente há fraudes, enquanto o índice é mais alto na medicina ou na engenharia, pois a competição é maior”, exemplifica.

Na opinião do cientista político, a nova regra de cotas é positiva, mas possui falhas e precisará de ajustes para as próximas eleições. “Daqui para a frente, isso vai fazer muita diferença. A decisão é importante e necessária, mas tem uma série de lacunas que podem levar a um aumento percentual de candidaturas negras, mas não necessariamente a uma melhoria na competitividade, e uma parte delas de forma fraudulenta”, conclui o especialista.

 

Leia também:
Negros são maioria entre os candidatos pela primeira vez em Minas

 

 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!