Recuperar Senha
Fechar
Entrar

Uma cidadezinha em que a canoa não vira jamais

Principais atletas da canoagem, entre eles Isaquias Queiroz, são de Ubaitaba, na Bahia

Enviar por e-mail
Imprimir
Aumentar letra
Diminur letra
AS
Isaquias Queiroz, atual campeão mundial, foi descoberto em projeto na cidade do sul da Bahia e é a principal esperança de medalha no Rio
PUBLICADO EM 10/05/16 - 03h00

No mapa, o rio de Contas é uma linha azul fininha que divide as cidades de Ubaitaba e Aurelino Leal, no sul da Bahia, distantes a 379 km de Salvador. De perto, essa linha vira uma avenida fluvial que define a vida na região. Anos atrás, meninos e adolescentes se ofereciam para remar as canoas que faziam a travessia do rio, pois não tinham o dinheiro da passagem – hoje, R$ 2. De canoeiros a canoístas, foi um pulo. Ou um mergulho.

Dos cinco atletas que se preparam para os Jogos do Rio, três são da região, um deles é o bicampeão mundial Isaquias Queiroz. Dos últimos dez torneios nacionais por equipes, oito foram vencidos por ubaitabenses. Além disso, Jefferson Lacerda, o pioneiro da canoagem brasileira em Olimpíadas, também é de lá. Isso ainda não existe nos mapas, mas Ubaitaba pode ser considerada a capital brasileira da canoagem.

Hoje, quase 60 alunos participam da escolinha gratuita da Associação Cacaueira de Canoagem. Existem dois pré-requisitos para entrar no curso: saber nadar e ir bem na escola. A cada trimestre, os professores da canoagem visitam a escola e também analisam o boletim de cada aluno. Se o aluno vai mal, é afastado por um período. “Tia, a gente já pode colocar o barco na água?”, pergunta Yuri Silva dos Santos, prata na categoria até 14 anos no Campeonato Brasileiro.

Até chegar à margem, meninos e meninas a partir dos 8 anos carregam nos ombros barcos de dez quilos. Os corpinhos mirrados, rascunhos de atletas, envergam, mas não quebram. O sonho de ser como Isaquias também vai no ombro e ajuda a equilibrar o peso.

Docentes e alunos tiram leite de pedra. A atleta, professora e presidente da associação Camila Lima pergunta se a reportagem esperava encontrar raias olímpicas para demarcar o espaço dos canoístas.
Jefferson Lacerda, integrante da primeira delegação brasileira a disputar a canoagem em Olimpíadas, em Barcelona 1992, avisa que o projeto nunca teve uma lancha para facilitar o deslocamento da professora até o meio do rio. Coisa básica em outros países.

Falta estrutura. Sem lancha, Camila tem de esgoelar na beira do rio para passar as instruções. Ou esperar que voltem. Aí, ela apoia o joelho em um dos degraus de pedra e dá seu recado. O apoio para os joelhos é feito com as borrachas dos tatames mais castigados pelo tempo – além da canoagem, a associação também ensina outras modalidades.

A própria sede é, na verdade, apenas um lugar para guardar os barcos. Mal cabe todo mundo. Todos os alunos usam embarcações de fibra de vidro, enquanto os atletas de ponta já estão com os de fibra de carbono, mais leves e mais rápidos, há muito tempo. Aqui, o problema é econômico: os primeiros custam R$ 3 mil; os outros, R$ 12 mil.

A qualidade da água está no limite do tolerável. Durante anos, ecologistas alertavam para o risco da destruição das matas ciliares, do despejo de esgotos e dejetos químicos de indústrias. Não adiantou. As margens abrigam sacos de lixo, latas de cerveja e roupa velha a poucos metros do local onde os meninos ouvem a “tia” Camila. Grande parte dos detritos da cidade vai parar no rio.

A Prefeitura paga um salário mensal de R$ 880,00 para cada uma das duas professoras do curso. A Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (Sudesb) e o poder municipal dividem as despesas de cerca de R$ 12 mil com alimentação, hospedagem e transporte para o Campeonato Brasileiro.

Na outra ponta, os atletas se viram para se manter com o Bolsa Atleta, destinado aos três melhores colocados no torneio nacional. São R$ 925 por mês.

Esporte que está no sangue

Os pilares da escolinha de Ubaitaba foram fundados simbolicamente muitas décadas atrás. A tradição do esporte em Ubaitaba não se explica apenas com as canoas nativas – existem inúmeras cidades divididas por rios, mas que não formam atletas. O livro “Viagem pelo Brasil”, de Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix, aponta uma herança indígena. Os relatos de 1820 afirmam que aqueles habitantes já eram bons remadores. Em tupi, Ubaitaba reúne as palavras canoa pequena, rio e aldeia. “A canoa está no nosso sangue”, diz a professora Camila Lima.

Os registros mais recentes, guardados com esmero em uma pasta preta plastificada por Dijalma Medina, diretor técnico da associação, contam que a primeira competição esportiva foi disputada em 1985. No ano passado, uma grande festa marcou os 30 anos da canoagem na cidade.

Ubaitaba é o polo principal, mas as cidades de Ubatã e Itacaré também deram sua contribuição. Erlon Souza, campeão mundial ao lado de Isaquias, é de Ubatã.

Outra faísca importante foi lançada por Jefferson Lacerda. Trinta anos atrás, esse filho da terra deixou a mensagem “sim, é possível” ao levar sua canoa para os Jogos Olímpicos de Barcelona, na Espanha, em 1992. Hoje, um dos seus alunos, Figueroa Conceição, é técnico da seleção feminina sênior e da masculina cadete.

Outro empurrão veio do projeto Segundo Tempo, do Ministério do Esporte e da Confederação Brasileira de Canoagem. A ideia era democratizar o acesso à prática da modalidade. Em 2005, o projeto descobriu Isaquias Queiroz, principal esperança de medalha da modalidade no Rio.

O projeto acabou, mas a tradição continua com a escolinha. Hoje, é no rio de Contas que estão ancorados os sonhos dos jovens de ganhar o mundo.

História inspiradora

Passeando com o ex-atleta Jefferson Lacerda pelas margens do rio de Contas, ele foi cumprimentado seis vezes. O integrante da primeira delegação brasileira da canoagem em uma Olimpíada (Barcelona 1992) e responsável pelo pontapé inicial para colocar Ubaitaba no mapa da canoagem é uma celebridade na Bahia.

Nascido em Ubaitaba – hoje, ele vive em Itabuna, também no sul da Bahia –, o baiano era um dos destaques do time. Disputou os Jogos no K2 (caiaque de dupla) nas provas de 500 m e 1.000 m, ao lado de Álvaro Kolowski, mas eles não se classificaram para as provas decisivas. Realizou o sonho, mas voltou frustrado. “O resultado poderia ter sido melhor, mas eu mostrei que era possível chegar às Olimpíadas”, conta ele, que se tornou um símbolo para os novos atletas nascidos na cidade. 

Rádio Super

O que achou deste artigo?
Fechar

Uma cidadezinha em que a canoa não vira jamais
Caracteres restantes: 300
* Estes campos são de preenchimento obrigatório
Log View