Uma grande confraria de maléficas criaturas ocupa ruas, festas, escolas, malls, fazendo que as cidades, de repente, sejam infestadas pelos mais populares vilões do cinema e outras criaturas mitológicas, como bruxas e zumbis: é tempo de Halloween, a tradicional festa norte-americana que já fincou raízes no calendário brasileiro. E, como se sabe, o país do Carnaval leva a sério a confecção de alegorias e costuma avançar para outro patamar modas estrangeiras – vide o alcance que outro evento “Cabelo Maluco”, antes exótico ao nosso calendário escolar, ganhou nas redes sociais neste ano.
Agora, nesta quinta-feira, 31 de outubro, o investimento já não é mais em elementos festivos, coloridos e brilhantes como nessas outras datas, mas, sim, em tons “trevosos” e itens macabros, como acessórios que simulam uma faca atravessando a cabeça, sangue falso e muita maquiagem para deixar a tez cadavérica. A festa, afinal, é um passe-livre para encarnar um interesse que, definitivamente, não está restrito apenas a um dia do ano: o universo da morbidade, do terror, do assombro e, em última instância, da morte.
“Os temas que não têm resposta nos instigam, então, a morte e seus mistérios, por si, já despertam, em nós, grande curiosidade”, avalia a psicanalista Cinthia Demaria, acrescentando que a possibilidade de viralização tende a tornar tudo mais atrativo, agrupando mais pessoas em torno da brincadeira, que, se conduzida de maneira responsável, não vai passar disso, uma brincadeira, sem se converter em uma atitude adoecedora de culto à morte.
Ela explica que a experiência de se fantasiar de um personagem, a primeira vista, perturbador, pode ir além do entretenimento. E se tudo está previamente combinado, a tendência é que, o que poderia dar medo em outro contexto, soe agradável se estamos em um ambiente controlado. “É um pacto que a gente faz com o cinema, quando topamos embarcar naquela história, mesmo que a gente saiba que ela é ficcional, que se passa em um universo fantástico, etc.”, compara, assegurando que a festa pode ser benéfica ao trabalhar o aspecto do lúdico.
“É algo muito importante porque devolve um pouco isso do que é velado, de botar um véu nessa realidade tão desvelada. Algo especialmente bom para crianças que estão entrando na adolescência, quando passamos por um grande desvelamento, com a realidade da vida cotidiana se pondo de forma muito rápida”, situa. A psicanalista prossegue apontando que, por meio dessas brincadeiras, conseguimos nos aproximar daquilo que é misterioso, insondável até. “E, ao encarar dessa forma o que dá medo, a própria morte, nos permitimos acessar questões das quais falamos pouco”, assinala.
A seu modo, as proposições da psicanalista têm ressonância nas opiniões de Lucas C. Lima, escritor de contos e romances de suspense, horror, mistério e fantasia sombria, que celebra a popularização do Halloween no Brasil. “Quando eu era criança, (a festa) não era tão comum”, recorda o autor de “O Sonho da Borboleta”, publicado pela Qualis Editora, inteirando que, para ele, uma data tem um quê de especial.
“Acredito que é quando as pessoas se permitem explorar com leveza aspectos mais sombrios da realidade, como o medo e a morte. Inclusive, acho que as fantasias, essa paramentação toda é mais que uma brincadeira, nos ajudando a entrar em contato com aspectos da nossa própria identidade que tentamos, muitas vezes, reprimir, como o que há de grotesco em nós”, sustenta. Para ele, o festejo macabro, assim como o contato com a literatura ou o cinema de terror, funcionam como uma montanha-russa: “A gente se propõe a vivenciar algo que poderia nos causar repulsa, mas em um ambiente seguro”.
Terror para o bem-estar
Os apontamentos de Cinthia Demaria e Lucas C. Lima sobre os festejos do Dia das Bruxas, celebrado nesta quinta-feira (31), ecoam, de certa maneira, resultados evidenciados por um estudo feito por pesquisadores da Universidade de Pittsburgh, nos EUA, cujo conteúdo foi publicado na revista especializada “Emotion”, em 2018.
Na ocasião, os estudiosos ouviram pessoas que haviam ido a um trem-fantasma, fazendo uma análise das reações desses participantes que costumam se submeter, voluntariamente, a atividades aterrorizantes. No total, 262 indivíduos foram ouvidos, sendo que 100 usaram sensores na cabeça para monitorar sua atividade cerebral.
Após o experimento, os cientistas identificaram que metades das pessoas relatou melhora de humor, um terço disse não ter sentido nenhuma mudança significativa e outros 17% experimentaram uma piora no ânimo. “É como a ideia de compensar a dor: você se sente melhor quando a dor é removida. Na verdade, o que as pessoas amam não é o medo, mas sim o prazer que ele traz depois de passar”, analisou Margee Kerr, coautora do estudo.
A conclusão da estudiosa, aliás, é semelhante àquela apontada por Cinthia ao falar sobre as festas de Halloween: “No fim, o que as pessoas estão fazendo e o grande barato desses eventos é a celebração da própria vida”.
Quando a brincadeira vira um problema
Na avaliação de Cinthia Demaria, a natural curiosidade pelo que é misterioso – e pela morte, mistério fundamental – torna-se problemática, por exemplo, quando leva a comportamentos obsessivos, a um tipo de sociabilidade que se pauta pelo mórbido e ao culto à morte.
“Isso acontece quando a fantasia foge àquele pacto pré-estabelecido. É o que acontece, para citar um caso, nas comunidades mortíferas que se formam na internet. Quando uma criança chega a esse universo, ela tem dificuldade de diferenciar o que é realidade do que é ficção e passam a se ver sujeitos daquela história, meio cúmplices, meio reféns. E, por isso, não conseguem nem sequer falar sobre essa experiência que, então, passa a assombrá-las, a aterrorizá-las de fato”, registra a psicanalista, que pesquisa a formação e as interações dessas comunidades.
Interessado pelo universo do mistério e do terror desde a infância, Lucas C. Lima celebra nunca ter “tropeçado” nesse tipo de espaço na web, onde frequenta fóruns especializados e produz conteúdo, como microcontos de horror em vídeo, publicados nas suas redes sociais. Ele, aliás, busca romper com a ideia de que os fãs da literatura ou do cinema de horror seriam “esquisitões”, uma concepção frequente no imaginário popular. “Somos uma comunidade como qualquer outra”, define.