Quando recebeu o convite para fazer um show, em 2019, Manu Diniz nunca havia pisado em um palco. Surpreendida com a proposta, ela recorreu ao marido, PJ, baixista da banda Jota Quest, na esperança de que o companheiro, com a experiência de uma carreira longínqua na música, a ensinasse o caminho das pedras. Mas o marido torceu o nariz. “Ele ficou surpreso, porque realmente é uma história surpreendente, e meio que não botou fé e desdenhou um pouco”, recorda.

Mas ela não se resignou, ao contrário. A reação do companheiro fez com que Manu se sentisse desafiada a aceitar a proposta. Mesmo sendo uma “cantora de chuveiro”, ela se dedicou à música com afinco, motivada pela desconfiança do cônjuge. “Eu fiz tudo sozinha, e hoje eu tenho um projeto chamado Divas, que é um sucesso. Meu primeiro show na vida aconteceu no Hotel Fasano, no Baretto [em São Paulo], no dia 27 de novembro de 2019”, relembra.

Manu prefere não usar a palavra raiva para definir o que a provocou a se mexer, porque, para ela, esse sentimento tem uma “conotação negativa.” Mas é justamente esse comportamento, comumente interpretado sob um ponto de vista nocivo, que pode ser o agente propulsor de mudanças construtivas na vida.

Segundo a psicóloga e psicoterapeuta Nicole Pimenta, a raiva pode, sim, ser usada como uma ferramenta para superar frustrações. “A raiva tem sua razão de existir em nosso repertório emocional, sendo uma emoção natural e legítima que faz parte da experiência humana. Ela pode ser entendida como um sinal de que algo não vai bem e que é necessária alguma mudança ou ajuste”, aponta. 

Nicole destaca, no entanto, o que é necessário fazer para que se consiga canalizar a raiva para algo positivo. “É necessário reconhecer sua causa, expressá-la de maneira assertiva e construtiva, e usar essa energia para promover mudanças positivas”, evidencia a especialista.

Psicóloga e sexóloga, Graziela Chantal acrescenta que, quando bem gerenciada, esse sentimento pode contribuir para o crescimento pessoal. “Ao identificar e aceitar a raiva, pode-se aumentar a autoconsciência e ajudar na melhor compreensão das próprias emoções e reações. Assim, é possível ter uma autorreflexão sobre o ocorrido. Ao canalizar a raiva de forma saudável, além de contribuir para a melhora das habilidades de comunicação, pode-se aprender a ter empatia e a ter uma escuta ativa”, indica Graziela.

E se por um lado expressar a raiva pode ser algo positivo, por outro, reprimi-la pode provocar uma série de prejuízos, como danos para o desenvolvimento mental, psicológico e comportamental. “Ao negar uma emoção, nos impedimos de reconhecer e de expressar de maneira saudável as nossas necessidades e desejos, fechando os olhos também para as ferramentas necessárias para o enfrentamento daquela situação que está provocando a raiva. Isso pode resultar em uma desconexão consigo mesmo, que, a longo prazo, pode causar problemas como ansiedade, depressão e dificuldades em se relacionar”, alerta Nicole.

Além de problemas de saúde mental, guardar a raiva consigo pode provocar malefícios ao corpo. “Pode haver aumento da pressão arterial, risco de problemas cardíacos, baixa da imunidade, dor de estômago, dores no corpo, comunicação violenta, isolamento social e impulsividade desproporcional”, explica Graziela.

Existem algumas maneiras de converter a raiva em algo transformador. O empreendedor Sidney Nogueira Silva, por exemplo, criou a Sala da Raiva, em Contagem, em que os clientes vão para poder quebrar tudo – literalmente.

Com taco de beisebol, martelos ou chave de rodas de caminhão, as pessoas têm oportunidade de destruir telas de computador, aparelhos de som, garrafas e impressoras. “Tem pessoas que vêm porque estão em luto, não só por perderem alguém, mas também por perderem emprego ou porque mudaram de curso da faculdade”, conta Silva.

Sidney Silva é o criador da Sala da Raiva. Foto: Flávio Tavares/O TEMPO

A raiva não precisa ser expressada sempre de maneira violenta, obviamente. Uma das estratégias recomendadas por Graziela é a prática da meditação. “Isso ajuda a estar no momento presente e a aceitar a raiva sem julgá-la. Praticar exercício físico, manter um diário para se expressar, se dedicar a projetos pessoais que precisam de foco e dedicação são outras maneiras de extravasá-la”, sugere Graziela.

Fazer terapia também pode ajudar nesse processo. “O terapeuta ajuda a pessoa a se reconectar consigo mesma de maneira autêntica e significativa, identificando as causas subjacentes de cada emoção, como, por exemplo, a raiva, evitando a agressividade como forma de expressá-la”, complementa Nicole.


Como reconhecer quando raiva é prejudicial? 


A raiva pode agir como uma força motivadora para alcançar objetivos pessoais e profissionais quando é sentida e vivida de forma assertiva, garantem as especialistas, mas é preciso reconhecer os sinais de quando este sentimento está sendo prejudicial.

“A raiva desproporcional, mesmo em situações menores, pode gerar impacto nos relacionamentos, ao invés de lidar com situações como conflitos. Ou seja, quando a raiva está descontrolada, a pessoa tende a entrar em um confronto, o que pode gerar agressividade, abuso de álcool ou drogas, alimentação desordenada, estresse excessivo, dores de cabeça frequentes,  pensamento de vingança, sentimento de menos valia e apatia pela vida, exemplifica a psicóloga Graziela Chantal.

A psicóloga Nicole Pimenta reitera ainda que existe uma diferença significativa entre sentir raiva e agir de forma agressiva. “A raiva é uma resposta emocional natural a situações percebidas como ameaçadoras ou injustas, enquanto a reação agressiva é um comportamento que visa causar danos. A chave para distinguir e gerenciar estas duas manifestações é desenvolver uma boa consciência emocional, por meio da auto-observação, autoconhecimento e autoaceitação. Além disso, é essencial se manter no controle de sua própria comunicação, aprendendo que as emoções podem ser expressas de forma assertiva, sem a necessidade de recorrer a reações agressivas”, aconselha Nicole. 

Um dia de fúria na Sala da Raiva

Relato pessoal da repórter 

Destruir tela é uma experiência libertadora. Foto: Flávio Tavares/O TEMPO

Durante a produção desta matéria, fui até a Sala da Raiva, não só para entrevistar dono do espaço, o Sidney Nogueira, mas também para poder participar da quebradeira – eu não ficaria de fora dessa, né?! 

Fiquei bem empolgada para poder estilhaçar os materiais, mas antes me paramentei com um par de manguitos (estava com uma blusa de manga curta), coloquei uma face shield e calcei luvas. Além disso, já estava com uma roupa confortável e de tênis, artigo fundamental para usar a sala.

Lá dentro, me equipei de um taco de beisebol, dois martelos e uma chave de roda de caminhão para quebrar garrafas de cerveja e de bebidas destiladas e destroçar dois monitores de computadores, que, certamente, já irritaram muitas pessoas que os operaram. 

Inicialmente, fiquei insegura, porque estava em uma sala repleta de caquinhos de vidro. É engraçado, pois eu não estava com raiva antes de destruir tudo, mas, assim que comecei, senti uma energia interna muito grande. Então, me joguei e “sentei o cacete”, com algumas pausas para as fotografias incríveis do meu colega, Flávio Tavares.

Ao final, senti ter passado por uma experiência libertadora, que me provocou ânimo e disposição. A euforia durou o tempo de eu passar a primeira raiva – levei uma fechada no trânsito –, mas, de longe, tentaria algo semelhante ao que William Foster (Michael Douglas) fez no icônico filme “Um Dia de Fúria”.