Uma amizade de duas décadas transformou-se num barraco público que se arrasta há pelo menos cinco anos, com direito a diversos recursos e decisões na Justiça. O caso da apresentadora Luciana Gimenez é ilustrativo tanto do hábito de muitas mulheres brasileiras de se confidenciarem com profissionais de beleza quanto dos riscos envolvidos. Em 2020, Luciana recorreu aos tribunais para impedir seu antigo maquiador Sérgio Di Vicentim de expor segredos de sua intimidade ao público. Os dois já haviam viajado juntos para Paris e passaram férias descontraídas na Disney, como comprovam cliques espalhados pelas redes sociais.
A decisão mais recente do imbróglio aconteceu em meados do ano passado, quando a apresentadora informou à Justiça que Sérgio não vinha cumprindo a determinação de não se referir a Luciana publicamente, ao postar fotos da ex-chefe em suas contas pessoais, acarretando multa diária de até R$10 mil. Sérgio alega que a reação de Luciana aconteceu após ele escrever um livro sobre bastidores do mundo dos famosos que ainda não foi publicado.
A aposentada Luarilce Lincoln não esconde o prazer de contar a própria vida para a manicure que a atende há cerca de dez anos. “É uma relação de confiança que nasceu da amizade, eu via ela mais do que muitas pessoas da minha família, e a gente se conectou muito rapidamente, porque temos um jeito parecido de ver a vida”, justifica Luarilce.
Advogada, Amanda Maciel conta que o ambiente do salão de beleza traz uma sensação de “conforto e intimidade” que nem sempre acontece em outros lugares. O principal aspecto seria o fato de ser frequentado basicamente por mulheres. No salão que ela frequenta havia só um profissional homem, responsável pelas sobrancelhas, mas ele acabou realocado para outro andar justamente para “preservar a liberdade das mulheres”. “Tudo isso e o clima de descontração nos ajuda a se abrir”, aponta Amanda.
Fofocas
A psicóloga Marcelle Primo atesta que a figura da profissional de beleza realiza o papel de “acolhimento e escuta da fala feminina”. Segundo ela, os assuntos variados costumam ir “desde as conquistas pessoais e profissionais, passando pelos problemas de relacionamento na família, filhos e com o par amoroso, receitas culinárias, procedimentos estéticos, receitas caseiras para tratamentos medicinais até fofocas de celebridades”.
“Poder falar de tudo com alguém, sem se sentir julgada, e ter a chance desse assunto não se espalhar é maravilhoso! Você pode dizer que odeia algum parente do seu par e está tudo bem porque o assunto ficará ali naquele ambiente”, analisa. Ao atuar como “amiga confidente”, a cabeleireira e manicure ajudaria “o tempo da cliente a passar agradavelmente enquanto o trabalho é realizado”.
“O tempo e o ambiente restrito ao local de trabalho trazem ainda mais segurança para a cliente. O combo ‘profissional que me escuta, em um lugar diferente do meu convívio, no qual eu posso falar do que eu quiser e não preciso pagar especificamente para isso’ possibilita esse depósito de confiança. Da parte da profissional de beleza envolvida, existem as identificações, as transferências e as contratransferências, permitidas nesse caso; os conselhos, os risos, as lágrimas e uma cliente que certamente voltará. O marketing contemporâneo visa muito a experiência do cliente. Certamente, essa escuta faz parte do serviço prestado e o torna mais atrativo do que um profissional silencioso”, complementa a psicóloga, que destaca o fato de esta ser “uma relação de mão-dupla”.
Troca
Marcelle vaticina que “as necessidades emocionais, tanto da cliente quanto do profissional de beleza envolvido são de muitas áreas e ordens”. “Engana-se quem pensa que é só a cliente quem se satisfaz nessa relação. O profissional também se beneficia, tem a chance de falar, de contribuir com suas experiências, de trazer conforto para si enquanto trabalha, ganha tempo hábil para a cliente não se entediar em processos que podem durar longas horas e leva para casa outros ares, de outros lugares sociais de vivência”.
A especialista observa que, além do acolhimento, da atenção e da expressão de afetos conturbados como a raiva, o ódio e o ressentimento, essa troca possibilita a “compreensão mútua de experiências semelhantes, o endosso da atitude tomada ante determinada situação, a troca de valores, a reflexão diante de uma perspectiva diferente, a busca pelo amor do outro, o respeito às diferenças, a compreensão de que o mundo é heterogêneo e a troca de afetos mais diretos como alegria, simpatia, carinho e admiração”, assegura Marcelle, que, todavia, faz um alerta.
“O profissional envolvido nessa relação é um profissional da beleza. A formação e o treinamento deles diferem daquele exigido de um profissional da área da saúde mental, como um psicólogo ou um psiquiatra. Um conselho mal dado, uma compreensão equivocada do acontecimento e o desconhecimento de patologias podem trazer prejuízos às pessoas mais frágeis, que não possuem suporte psicológico para lidar com determinadas respostas e estilos de vida”, sublinha.
Como exemplo, ela aborda a necessidade de escolher uma medicação adequada para determinada doença, ou buscar soluções jurídicas sem a devida assessoria de um advogado para esclarecimentos de direitos e deveres, até fazer planos para prejudicar e atentar contra alguém, o que poderia levar essa relação a “afundar rapidamente”. “O profissional de beleza deve saber quando parar e avisar que a partir dali a seara já não está mais ao seu alcance e que se trata apenas de suas opiniões sobre o assunto”, orienta Marcelle.
Os limites da intimidade
Frequentados em sua maioria por mulheres, o ambiente do salão de beleza tende a incentivar “o clima de intimidade e confidência”. Além disso, “mulheres adoram conversar”, sustenta a psicóloga Marcelle Primo.
“É uma turma de amigas, mesmo que amigas temporárias, que nunca mais se verão. A arquitetura também facilita, com as salas fechadas para serviços mais específicos, como depilação, banho-de-lua, design de sobrancelhas e bronzeamento, quase sempre com duas pessoas apenas, o que autoriza a emersão do secreto. Aquilo que não pode ser dito em público, entre quatro paredes reservadas obtém amparo para a manifestação. Ter a certeza de que o que é dito ficará e morrerá ali é uma tranquilidade”, declara a especialista, que não deixa de perceber uma relação de poder.
“Ser uma cliente exposta perante alguém implica desproteção, um estado com menos defesas. O profissional possui o poder de saber ou de querer saber sobre o que está descoberto”, salienta. Todavia, a postura da cliente também pode se configurar em abuso, a depender da maneira como se desenvolve.
“Quando a cliente volta para conversar e não para realizar o serviço de costume, há algo atípico. Os motivos para o retorno ao salão estão fora do contexto dos atendimentos realizados. Deixou de ser um contrato entre prestador de serviços e consumidor. O profissional da beleza envolvido na relação tem o direito e o dever de colocar limites nessa cliente para que ela não se torne uma referência deslocada nem traga ocorrências invasivas e prejudiciais ao seu trabalho”, afirma a psicóloga, para quem “ligações fora do expediente e mensagens excessivas também indicam que algo está indo para onde não deveria”. O mesmo vale para a via contrária.
“O vazamento de informações pessoais, fotos e valores envolvidos sem o devido consentimento da cliente também indica que o profissional perdeu a nuance da relação de trabalho. É comum que a gente goste mais de algumas pessoas, que queiramos nos aproximar e ser amigas delas, mas elas têm que deixar isso acontecer. Caso contrário, é só um desvio de propósito que pode ser corrigido com a contenção do afeto e o entendimento de que ali não cabe ir adiante ao que já existe”, finaliza.