A empresária Luciene Ribeiro, de 55 anos, é direta ao ponto. “Só coloco no prato o que tenho vontade de comer”, declara. No entanto, vez ou outra ela repara “discretamente no prato das outras pessoas”. Matheus Carvalho, de 18 anos, ainda estudante, já tirou foto de seu prato de comida para as redes sociais, mas abandonou o costume. “Prefiro aproveitar o momento do que ficar mostrando para os outros”, diz. Ao mesmo tempo, ele considera válido que os restaurantes invistam em comidas fotogênicas. “Hoje em dia é o que dá mais mídia”, constata.
Tanto é verdade que a estudante Júlia Fontes, de 21 anos, admite que, “se a comida estiver bem bonitinha”, ela tira foto e ainda posta. “Uma vez comi um poke (prato tradicional havaiano) que era uma obra de arte e também estava bem saboroso. Mas têm pratos que são muito bonitos e deixam a desejar no tempero, no sabor, etc”, avalia. Por outro lado, Ingrid Santos, de 19 anos, que trabalha como auxiliar administrativa, não tem interesse em tirar foto de prato de comida. “Mas não julgo as pessoas que fazem isso. A beleza da comida me atrai, mas nunca fui a um restaurante para comer só por conta de uma foto bonita”, pondera.
Enfermeira, Jussara Rodrigues, de 46 anos, acrescenta outro viés ao debate. “Já fiz isso, mas hoje em dia eu critico as pessoas que postam foto de comida. Acho que virou uma coisa de ostentação, não me sinto à vontade, ainda mais em um mundo onde tanta gente não tem condições de ter uma refeição digna, então prefiro compartilhar esse momento só com as pessoas que estão ali comigo na hora”, reflete. Fato é que essa categoria moderna da relação com a alimentação gerou aquilo que pesquisadores ao redor do mundo têm chamado de “comer performativo”.
Performance
A nutricionista Silvia Hespanha explica que esse fenômeno acontece “quando a alimentação deixa de atender apenas às necessidades fisiológicas e principalmente do prazer pessoal, e passa a ser usada como uma forma de ‘mostrar algo’ para os outros, seja status, estilo de vida ou disciplina”. “O que eu sempre observo no meu consultório é que os principais motivadores são a busca por aceitação social, o medo de julgamento e a tentativa de se encaixar em padrões de corpo ou de saúde que circulam nas redes sociais ou no círculo de amizades”, destaca.
Para o psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça, “a vontade do ser humano em ser reconhecido e pertencente a um grupo é comum a todos”. “O que acontece com as redes sociais é que elas potencializam essa necessidade básica, muitas vezes de maneira prejudicial”. Segundo o especialista, as redes sociais entregam um reconhecimento que vem apenas da aparência. “A pessoa passa a ser só uma vitrine sem conteúdo. Esse é um problema da nossa era, e acredito que o ‘comer performativo’ entra nesse rol de querer ‘parecer’ mais do que realmente ‘ser’”, diagnostica.
Perigos
Silvia alerta que esse tipo de comportamento “pode gerar uma desconexão com as reais necessidades do corpo e da rotina”. “Muitas vezes a pessoa prioriza o que ‘fica bem na foto’ ao invés do que realmente gosta e que vai nutrir o seu corpo. Isso pode levar à procura por dietas restritivas desnecessárias e até a uma culpa ao comer algo considerado ‘fora do padrão’. Eu sempre reforço em consultório que não existe um padrão alimentar, e que a gente deve escolher aquilo de que realmente gosta”. Em se tratando de alimentação, a nutricionista afirma que tudo depende da forma como nos colocamos nessa equação.
“Os benefícios estão em ampliar o olhar, preocupar-se com a origem dos alimentos e a sustentabilidade, o que é positivo para a saúde individual e coletiva. Já o cuidado com a estética do prato pode, inclusive, aumentar o prazer e estimular a variedade de cores e nutrientes, é legal comer com os ‘olhos’, preocupar-se com um prato variado. O risco surge quando esses fatores se tornam obsessivos, ultrapassando o equilíbrio. Nesse ponto, a estética se sobrepõe à nutrição e a pessoa pode se afastar do comer leve e prazeroso”, compara.
Rodrigo concorda que “o mais adequado é ter uma forma de viver que seja sustentável”. “Isso significa conseguir sustentar a sua maneira de viver ao longo da vida, dos anos, dos meses. O que acontece quando a gente performa em excesso é que esse comportamento se torna insustentável por muito tempo. Isso vale para o ‘comer performativo’ e para outras atitudes performáticas que realizamos apenas para parecer ser o que não somos. Se a pessoa se sacrifica muito para manter uma rotina que não é sustentável, cedo ou tarde ela irá ceder”, reforça.
O psicólogo observa que “a pessoa que vive performando coloca a sua autoestima muito dependente da opinião dos outros, e isso pode variar infinitamente, ainda mais nesse cenário de redes sociais”. “O ideal é que a nossa autoestima não seja tão dependente, especialmente de pessoas que a gente não conhece, de pessoas distantes, que não pensam em nosso bem-estar. Existem pessoas que nos amam e a opinião dessas pessoas é que deve ser importante para todos nós”, sublinha.
Orientações
Em seu consultório, Silvia conta que, nos casos em que identifica um “comer performativo”, sua primeira atitude é “acolher sem julgamento, entendendo a intenção por trás do comportamento”. “Depois, trabalho a reconexão com os sinais internos de fome, saciedade e prazer. Mostro que não há problema em valorizar a apresentação ou a origem dos alimentos, desde que isso não gere sofrimento ou afastamento do que realmente importa. Reforço que comer é um ato de autocuidado, e não de performance”.
Ela corrobora que “as imagens de pratos ‘perfeitos’ e corpos idealizados geram comparação e pressão”. “Percebo um aumento dessa cobrança, muitos chegam ao consultório acreditando que precisam seguir padrões rígidos para estarem ‘corretos’ e que parece fácil como é no Instagram”, salienta. Todavia, a nutricionista pontua que “as redes também podem ser ferramentas de informação positiva, quando usadas para mostrar variedade, equilíbrio e realidade no dia a dia”.
Silvia utiliza seu próprio exemplo. “Mostro meu dia a dia e minha realidade, com pratos bonitos, ‘instagramáveis’, e pratos realistas para a minha rotina de mãe, empresária, esposa. Mostro isso de uma maneira leve, deixando claro que nem sempre eu vivo de fotos bonitas, mas o meu foco sempre foi o meu bem estar e a minha saúde”, arremata.
Dicas e estratégias
A nutricionista Silvia Hespanha oferece de bandeja algumas dicas para diferenciar um interesse genuíno pela alimentação saudável do comportamento meramente performativo, que pode, inclusive, mascarar transtornos alimentares e de ansiedade graves, como bulimia e anorexia.
“O interesse genuíno é flexível, traz leveza e prazer, a pessoa busca comer bem, mas não se sente culpada ou ansiosa ao sair do planejado. Se sair, ela retorna na próxima refeição. Já o comer performativo costuma ser rígido, cheio de regras e medo do julgamento externo, não é prazeroso. Quando a alimentação passa a gerar sofrimento, restrição excessiva ou isolamento social, é um sinal de alerta para uma possível relação pouco saudável com a comida”, avisa.
Entre as estratégias para desenvolver uma relação mais autêntica e menos performativa com a comida, a especialista elenca pontos-chave, como “praticar a escuta do corpo (reconhecer sinais de fome e saciedade); resgatar o prazer em comer, se permitir sair do plano alimentar sem culpa; valorizar a individualidade (o que funciona para um pode não funcionar para outro); e reduzir as comparações, lembrar-se de que as redes sociais mostram recortes, não a realidade completa; além de buscar o equilíbrio sempre”. “Pratos bonitos e sustentáveis são bem-vindos, desde que não substituam o cuidado de dentro para fora. O mais importante é lembrar que a alimentação não precisa ser palco de performance, mas sim um espaço de cuidado, conexão e bem-estar com você”, finaliza.