Comportamento

Burnout afetivo: mais do que uma frustração amorosa

Para especialista, sensação de esgotamento nas relações pode causar quadros de depressão e sintomas físicos


Publicado em 16 de março de 2022 | 03:00
 
 
 
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Desde 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu pela classificação da síndrome de burnout como uma doença ocupacional. O entendimento foi oficializado em 1º de janeiro deste ano. No texto, o problema é caracterizado como um distúrbio sistêmico provocado pelo “estresse crônico de trabalho que não foi administrado com sucesso”. Os sintomas estão relacionados a esgotamento físico e mental, cansaço, sensação de exaustão, irritabilidade, insônia, perda de apetite ou exagero na alimentação e tristeza. Sem tratamento, a síndrome pode repercutir em uma série de outras complicações, como queda de imunidade, dores de cabeça, doenças estomacais e crises de ansiedade. Além disso, pacientes com o diagnóstico são considerados mais vulneráveis à manifestação de quadros depressivos. 

Agora, o termo, que ainda é novidade para muita gente, também vem sendo usado para caracterizar, no contexto de relacionamento, uma sensação de esgotamento afetivo. “O que está sendo chamado atualmente de ‘burnout afetivo’ (ou ‘dating burnout’, em inglês) é uma derivação não oficial da síndrome de burnout. Tem-se usado a expressão para se referir a pessoas cansadas de frequentes frustrações amorosas, que produzem um esgotamento tanto físico quanto mental semelhante ao da síndrome original, incluindo uma série de sintomas ansiosos e depressivos”, explica o psicólogo clínico Rodrigo Tavares Mendonça, especialista em psicoterapia de família e casal. 

“Em nível clínico, acredito que a nova classificação tem pouco a contribuir, que os diagnósticos atualmente existentes conseguem explicar bem as consequências de frustrações amorosas repetitivas. Além disso, é preocupante a existência de um excesso de diagnósticos que tanto patologizam pessoas e comportamentos quanto criam um mercado para a indústria farmacêutica”, pondera o psicólogo. Ele admite, contudo, que, a nível social, “é possível que a nova classificação possa contribuir para o debate sobre as relações amorosas líquidas existentes no nosso tempo”. 

Sintomas e consequências 

Considerando, portanto, não se tratar de um diagnóstico formal, Rodrigo Tavares Mendonça explica que o principal sinal de um burnout afetivo é o cansaço extremo para iniciar novas relações amorosas após repetidas frustrações. 

“A pessoa perde a energia para procurar uma nova relação amorosa, perde o interesse, sente-se realmente esgotada. Sintomas traumáticos podem ser frequentes, como a revivescência das experiências amorosas que desencadearam sofrimentos intensos. Sintomas depressivos também costumam aparecer, como a perda do interesse por atividades da vida diária que antes eram prazerosas, como assistir a um filme ou sair com amigos. Pensamentos autodepreciativos, como a crença de não ser uma pessoa interessante para ninguém ou de não ser capaz de manter um relacionamento estável, também são recorrentes. Por fim, os sintomas ansiosos se revelam produtores de intenso sofrimento, pois crises de ansiedade e medo excessivo de entrar em um novo relacionamento e viver as mesmas experiências podem acontecer”, detalha. 

Fatores de risco. O especialista indica que muitos fatores psicológicos e sociais podem produzir vulnerabilidades para o burnout afetivo.  

“Estamos falando de frustrações e de sofrimentos intensos desencadeados por decepções amorosas, histórias que são tão antigas quanto a própria humanidade. Porém, como bem apontou o pensador polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), vivemos tempos líquidos. O sociólogo apontou, como um sintoma da contemporaneidade, a liquidez das relações humanas, ou seja, a facilidade com que se constroem e destroem laços entre as pessoas. Em todos os níveis, as relações humanas se tornaram excessivamente substituíveis, assim as pessoas passam pelas vidas umas das outras como uma facilidade e uma velocidade inéditas. O resultado é a produção de um medo generalizado, como se uma relação antes estável pudesse, a qualquer momento e sem uma justificativa concreta, acabar”, cita, acrescentando que, segundo Bauman, que formulou a teoria antes da popularização da internet e do surgimento das redes sociais digitais, essa liquidez excessiva é uma novidade do nosso tempo. 

“E a internet, com toda a sua velocidade e facilidade de fazer e desfazer novos amigos ou de bloquear pessoas, apenas aumentou a potência dessa liquidez excessiva. Inseridos nesse contexto líquido, estão os aplicativos de relacionamentos, amplamente usados pela população e potencializados pelo isolamento social desencadeado pela pandemia atual”, examina Mendonça. 

Ele acrescenta que, para além do contexto em que estamos vivendo, outras características pessoais podem tornar a pessoa mais suscetível a sofrer com esse esgotamento afetivo. “A autoestima baixa, com pensamentos autodepreciativos de incapacidade, pode ser um fator de vulnerabilidade para muitos transtornos mentais, incluindo aqui o burnout afetivo”, cita.

Aspectos comportamentais também devem ser levados em consideração, como a insistência em um relacionamento que deu errado. “É algo que pode também contribuir para o quadro tanto pelo tempo e energia que se gastou quanto pela sensação de fracasso e incapacidade que podem aparecer como consequência”, informa. “Um pensamento comum nessas situações é a pessoa se sentir responsável por fazer o relacionamento dar certo ou, pior ainda, por fazer o outro se apaixonar por ela ou amá-la de verdade. As frequentes tentativas frustradas podem produzir estresse e cansaço extremos, que caracterizam o burnout”, completa. 

Outro elemento que deve ser considerado diz respeito à história de vida do indivíduo. “A vivência constante de um relacionamento abusivo pode contribuir para esse esgotamento justamente porque a pessoa abusada frequentemente se percebe responsável pelo bem-estar da relação e se culpabiliza pelos constantes excessos de ciúme ou violência de sua parceria, além de se perceber incapaz de ser feliz sem a pessoa ou de construir um novo relacionamento mais saudável”, pontua o psicólogo. 

“A confiança excessiva no outro no início do relacionamento também pode ser um problema, especialmente se a construção do relacionamento aconteceu sem uma história prévia ou sem amigos em comum, que podem acabar exercendo uma influência de proteção”, sinaliza o profissional, alertando que esse tipo de relação é frequente quando se inicia por meio de aplicativos. “Ressalto que os aplicativos não são um mal, porém eles trazem consigo elementos novos que devem ser considerados. É preciso respeitar o tempo para se construir confiança, permitir que a relação avance sem pressa, sem o imediatismo dos tempos atuais. Conhecer tanto a pessoa quanto o círculo de pessoas em volta dela é uma atitude importante”, aconselha.  

Prevenção. Rodrigo Tavares Mendonça adverte que evitar expectativas não é uma boa alternativa em termos de prevenção ao burnout afetivo. “O problema é a expectativa depositada na pessoa errada. Sem expectativa, os relacionamentos se tornam realmente líquidos. Em muitos casos, o problema é a expectativa construída cedo demais e sem uma avaliação adequada”, assegura. 

Para ele, o melhor caminho para se resguardar de uma situação de esgotamento afetivo passa pelo autoconhecimento e pelo fortalecimento de uma boa autoestima. Além disso, “atentar-se para a liquidez dos relacionamentos contemporâneos pode aumentar o cuidado e diminuir a pressão causada pelo imediatismo”, diz, inteirando que se responsabilizar por si mesmo e não pela relação, pois essa responsabilidade é compartilhada, é também uma atitude saudável.

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