Comportamento

Com a pandemia e o isolamento, mais pessoas têm relatado lapsos de memória

Para especialistas, problema está relacionado a menor engajamento social e à sensação de que dias se tornaram ‘iguais’


Publicado em 15 de abril de 2021 | 03:00
 
 
 
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Uma fornada de pães de queijo que, por esquecimento, fica tempo demais ao fogo, passa do ponto e acaba ficando queimada. É provável que, a julgar pelo crescente número de relatos de lapsos de memória, essa situação tenha se tornado mais frequente no último ano. Pode-se até deduzir que um volume inédito da iguaria tenha ido parar na lixeira por conta desse clássico “descuido à mineira”. Certo mesmo, para além de suposições, é como, notavelmente, mais pessoas têm reconhecido maior dificuldade em se recordar de um fato recente, de se lembrar daquilo que iria fazer ou de manter a concentração. Para especialistas, o fenômeno está diretamente relacionado a um conjunto de fatores ligados sobretudo ao isolamento social, necessário para conter a pandemia de Covid-19.

Embora mais comumente relatados por pessoas idosas, os lapsos de memória estão longe de ser um problema apenas para quem tem mais de 60 anos. “Percebi, sim, que fiquei mais esquecida, principalmente quando a questão é lembrar pequenas ações que eu fiz depois de alguns dias. Além disso, tenho me distraído com facilidade quando vou realizar alguma tarefa e acabo esquecendo o objetivo principal”, confirma a estudante Giovana Werkhaizer, 18. Ela prossegue assegurando ouvir a queixa também entre amigos e familiares. “Acho que estão na mesma situação que eu, mas acredito que, por ser mais nova, não estou sendo diretamente afetada com isso em questões mais sérias”, comenta, em referência ao fato de que episódios assim podem ter efeitos mais graves, por exemplo, no ambiente profissional.

Giovana acredita que os prejuízos à capacidade de recordar eventos e de manter a atenção são efeito da falta de contato com a vida social e da quebra da antiga rotina, ambas situações associadas à atual emergência sanitária. E, de fato, esses são alguns aspectos apontados por especialistas que buscam compreender o que está por trás desse recente aumento do volume de queixas de problemas de memória. “Tenho a impressão de que há um emaranhado de fatores que, dentro de um contexto geral, explicam esse acontecimento”, sinaliza a especialista em psicologia médica Telma Oliveira.

Dias iguais. A transformação da vida cotidiana é um desses elementos. “No consultório, o que tenho visto é que as pessoas estão deixando de lado, por necessidade ou por falta de motivação, alguns hábitos que nos tempos considerados “normais” são comuns – como de leitura ou interações sociais. Com isso, perdem-se alguns marcadores que são um componente importante para a memória”, explica a neuropsicóloga. 

“O mesmo vale para aqueles que estão ficando mais tempo em casa, seja porque tiveram a sorte de estarem em home office, porque as aulas presenciais seguem suspensas ou porque as academias estão fechadas, por exemplo”, diz Telma. Ela expõe que, com tudo acontecendo no mesmo ambiente, sem precisar sair para o trabalho ou para a escola, os dias podem começar a parecer iguais. E, com isso, fica mais difícil diferenciar as coisas que fizemos ontem daquelas que fizemos na semana passada.

Telas. O uso constante de telas pode ser outro fator por trás desses lapsos. “O tempo todo, estamos usando recursos online. E isso implica uma alteração na forma de perceber as coisas, o que pode gerar prejuízo à memória”, avalia. Em outras palavras, como a reunião de trabalho, os encontros com amigos e as outras várias tarefas do dia a dia são feitas frente a um mesmo instrumento, o cérebro pode ter mais problemas para gravar esses diferentes acontecimentos e distingui-los.

Além disso, por ser mais difícil decodificar sinais não verbais em videochamadas, essas conversas tendem a ser mais cansativas. “Se estamos nos falando presencialmente, basta um simples movimento seu para que eu saiba que você deseja falar algo. Então, me interrompo, e a conversa flui. Isso acontece o tempo todo, de forma orgânica. Mas, virtualmente, não é assim. A conversa tende a ficar mais truncada, mais dura, porque não notamos esses sinais emitidos pelo outro”, avalia, complementando que esse cansaço mental é outro fator para que memórias deixem de ser gravadas.

Engajamento social. Nesse contexto, há um enfraquecimento do engajamento em conversas, que acabam perdendo tração. “Antes, quando a gente circulava, temas de bate-papo surgiam o tempo todo”, lembra Telma. Uma pessoa, ao andar pelas ruas, poderia ver um conhecido, com quem poderia conversar, mesmo que brevemente. Aquele encontro ainda poderia repercutir em outras conversas com outro amigo em comum. Agora, mesmo em termos de amenidades, há menos sobre o que se falar. E esse é mais um problema, pois contar histórias é uma forma de fixar recordações.

Emoções à flor da pele

Os fatores emocionais também estão diretamente ligados à capacidade de memória, estabelece a geriatra Bárbara Corrêa, que também viu as queixas sobre o problema se tornarem mais comuns entre adultos jovens e, principalmente, entre idosos. “Atendo esses dois públicos e posso confirmar que é uma reclamação quase unânime”, garante. 

Para ela, isso acontece porque, com a pandemia, por conta de toda a incerteza sobre o que vai acontecer, sobre quando tudo isso vai acabar, as pessoas têm sofrido mais com distúrbios de ansiedade. “Nesses quadros, costumamos nos ater a algumas preocupações, dedicando muita energia a pensar nesses cenários futuros. Com isso, é comum que a gente se esqueça de compromissos ou de cumprir horários. E, como a atenção dispersa, pensamos em muitas coisas, quando tentamos resgatar uma informação que precisamos, que é o que a memória faz, há problemas”, reforça.

Bárbara acrescenta que, em situações de estresse, acabamos não percebendo alguns fatos e, portanto, deixamos de memorizá-los. Ela ainda assinala que sentimentos de angústia acentuada, que não têm sido incomuns e que reverberam em quadros depressivos, também implicam problemas de memória.

Cabe dizer, o Brasil tem sido apontado como o país que mais viu crescer o número de diagnósticos de depressão e de ansiedade. O dado é de um levantamento da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, que considerou índices de 11 nações. Outro estudo, conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, em parceria com outras seis universidades em meados do ano passado, dá a dimensão do problema. Segundo a pesquisa, 40% da população adulta brasileira se sentia triste ou deprimida, e 50%, nervosa e ansiosa.

Sono. As mudanças de rotina, o contato permanente com telas e as emoções à flor da pele criam um cenário de risco que comprometem a qualidade do repouso noturno, o que também traz prejuízo à memória. Afinal, como explica o psiquiatra Dirceu de Campos Valladares Neto, é nas fases de sono profundo que o cérebro consolida memórias, tornando-as permanentes, e reforça o aprendizado acumulado durante o dia. 

Agrava o problema o fato de que, para driblar as dificuldades de dormir ou aplacar o estresse e a ansiedade, muitos acabam abusando de medicamentos, como tranquilizantes, ou de álcool. Substâncias também afetam o poder de concentração, de aprendizado e de rememorar fatos.

Idosos sofrem mais com o problema

Se o fenômeno vem causando desconforto a pessoas dos mais diversos grupos etários, o esquecimento é ainda mais grave no caso de idosos, sobretudo para aqueles com diagnóstico de demência. “Todo esse contexto corrobora uma piora desses quadros”, explica Bárbara Corrêa. “Nesse período, vejo pacientes que tinham lapsos anteriormente, o que se tornou mais comum agora. Outros ainda não tinham manifestações clínicas do problema e passaram a ter. O isolamento, para muitos, foi a gota d’água”, afirma.

Além disso, com as famílias estando mais tempo em casa, episódios de perda de memória se tornaram mais explícitos, o que levou a uma ampliação do volume de diagnósticos. “Se antes os filhos visitavam seus pais só no fim de semana, aquelas pequenas situações acabavam sendo ignoradas. Isso muda com uma presença mais constante da família, que, nesse momento, acaba atuando para evitar que esses idosos precisem sair à rua”, pontua.

Soluções. A psicóloga Telma Oliveira destaca que, em casos que não são clínicos, algumas soluções podem levar à recuperação da capacidade de memória. “Primeiramente, é importante cuidar da saúde mental. Atividades físicas contribuem para o relaxamento, trazendo benefícios desejados. E exercícios para o cérebro também são bem-vindos, como jogos, quebra-cabeças, caça-palavras e a leitura de livros”, cita.

Já a geriatra Bárbara Corrêa destaca ser importante estabelecer rotinas, o que vai repercutir em menos ansiedade e melhor qualidade de sono. No caso de pessoas que já possuem diagnóstico de alguma demência, a consulta médica é fundamental. “Esses pacientes podem demandar um ajuste de medicamentos, então essas queixas não devem ser negligenciadas”, argumenta.

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