A dissecação de corpos no aprendizado da medicina é milenar: existem registros da prática desde pelo menos o século II a.C. O corpo humano não se modificou, mas as faculdades têm adotado novos recursos tecnológicos para suas aulas de anatomia. O que antes se resumia a corpos conservados em formol e bisturis hoje inclui cadáveres sintéticos realistas e óculos de realidade aumentada. Mas, mesmo com os avanços, professores insistem que a experiência com corpos reais é insubstituível.
Uma das produtoras de tecnologias para a área é a startup brasileira Csanmek, em operação desde 2015. Sua plataforma multidisciplinar 3D é um programa que utiliza arquivos de tomografia e ressonância para construir visualizações tridimensionais do corpo em uma tela.
Com ela, segundo o CEO da empresa, Claudio Santana, os professores conseguem mostrar o interior do corpo aos alunos com exames reais, o que permite que vejam a diferença dos vasos sanguíneos de uma pessoa obesa e de alguém magro, por exemplo.
A empresa também desenvolve cadáveres sintéticos, modelos de cor e textura realista que podem reproduzir processos humanos, como sangramentos. “Alguns especialistas dizem que eles substituem o corpo muito melhor que o cadáver, porque têm densidade e estrutura do corpo humano vivo, enquanto o cadáver tem vasos ressecados, por exemplo”, diz.
Ele não defende a substituição dos cadáveres reais nas aulas de anatomia, mas acredita que a tecnologia favoreça o ensino mais ativo da medicina para os alunos terem contato com situações reais de atendimento mais cedo. “Antigamente, os alunos iam treinar nos pacientes, mas hoje eles têm um treinamento nos modelos sintéticos, em que têm liberdade para errar”, explica.
Segundo o CEO, quase cem faculdades brasileiras e mais de 20 no exterior utilizam o simulador 3D, que pode custar entre R$ 200 mil e R$ 400 mil.
O professor Humberto Alves, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do Vida Após a Vida, programa da escola de doação de corpos para estudo, reforça que a tecnologia é bem-vinda, mas que cadáveres reais são essenciais na formação técnica e ética dos médicos.
“Você instrui a pessoa a conviver com a morte, e isso é importante na medida em que o médico lida com pessoas que um dia vão morrer”, diz. Maiara Marques, estudante do último ano do curso na UFMG, concorda que lidar com corpos reais é indispensável, mas desejava mais acesso a tecnologias nas aulas de anatomia. “Apesar de todo o respeito pela história da pessoa, o cadáver já está ali há muito tempo, virou um boneco, mesmo que isso seja muito difícil de falar”, diz.
Hoje, a UFMG não utiliza tecnologias avançadas como a da Csanmek – a verba limitada é um impeditivo, segundo Alves –, mas tem manequins robotizados que simulam reações do corpo, além dos cadáveres reais.
Programa de doação de corpos avança
Existem pelo menos 31 programas de doação de corpos em faculdades do Brasil, entre instituições públicas e privadas. A vice-presidente da Sociedade Brasileira de Anatomia, Andrea Oxley, acompanha esse movimento desde o fim dos anos 90 e comemora o avanço. Há dez anos, diz, havia somente dois programas consolidados.
A UFMG foi pioneira nesse tipo de programa de doação, com o Vida Após a Vida, que se iniciou em 1999, ainda sem o nome atual. Há cerca de cinco anos, todos os cadáveres utilizados na escola são fruto de doações. Mais de 1.300 pessoas estão cadastradas no projeto, e cerca de 120 faleceram.
Andrea acredita que a formação dos médicos tende a ser cada vez mais humanizada, e o contato com os corpos doados é essencial nesse processo.
Ela conta que a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), onde é professora, tem convidado familiares dos doadores à instituição para receber uma homenagem com a participação dos estudantes. “Isso passou a fazer parte da formação dos alunos”, diz.
A UFCSPA, segundo Andrea, fez um levantamento em 2015 para mapear a utilização de corpos em faculdades de medicina e descobriu que apenas 8% utilizavam unicamente modelos sintéticos.
O que diz a lei
A doação de corpos é permitida pelo capítulo 14 do Código Civil do Brasil e deve ser feita de forma gratuita.
O uso de corpos não reclamados (não reconhecidos ou cuja família não foi encontrada) é permitido, exceto em casos de crimes.
Como doar
Cada universidade tem métodos próprios para receber doações. Na UFMG, é preciso passar por uma entrevista. Contatos: (31) 3409-9739 ou (31) 3409-9632.