A entrevista ainda não havia começado quando se ouviu o choro de Maria Luiza, a Malu, e logo a ligação precisou ser brevemente interrompida. Com 1 ano e 5 meses, a pequena ficou sob os cuidados de seu pai enquanto a mãe conversava com a reportagem de O TEMPO. “É assim a maternidade”, ponderou a estilista e artesã Ana Elisa, 35, antes de levar a criança para o cômodo em que estava seu marido – que trabalha no setor bancário e está em home office. Detalhe: antes de o telefonema ser realizado, houve todo um planejamento de forma que o itinerário de Malu não fosse abalado e ela tivesse suas necessidades, como a amamentação, satisfeitas nos horários em que está habituada. Evidentemente bem-vindos, os cuidados não garantiram qualquer previsibilidade.
A situação toda, aliás, resume perfeitamente bem o debate que se seguiu, por cerca de 40 minutos, a partir de então: Ana é parte de um movimento crescente de mulheres que, sem medo, compartilham suas histórias e falam sem tabu da maternidade real, buscando dissociá-la de ideias preconcebidas e idealizadas. Afinal, ainda hoje tanto se fala do paraíso de ser mãe que, por vezes, pode parecer pouco o padecer.
“Entre as muitas coisas que a chegada da Malu me ensinou está o fato de que é um mito aquela mulher que dá conta de tudo – da casa, do filho, do marido, dos cuidados com a beleza e com a saúde – e ainda está sempre plena”, observa a artesã, completando que, a exemplo do momento em que entregou ao marido o cuidado da pequena, “mães precisam de apoio e precisam entender que está tudo bem pedir ajuda”.
As ponderações de Ana podem soar como uma obviedade, ao que é importante lembrar que são muitas as mães que relutam em assumir que estão sobrecargas porque foram levadas a acreditar que dariam conta de tudo sozinhas e que um instinto materno, biológico até, seria suficiente para a lida com todas as complexidades intrínsecas à maternagem. E, quando decidem pedir ajuda, ainda precisam lidar com julgamentos: socialmente, é esperado que elas, de fato, deem conta de tudo. A psicóloga e psicanalista Gabriella Cirilo indica que esse quadro pode levar ao adoecimento, conduzindo, por exemplo, ao esgotamento físico e emocional e ocasionando fenômenos como o mommy burnout, estrangeirismo que se refere à exaustão e ao estresse crônicos de mães.
“Sabemos das múltiplas jornadas que uma mulher possui, seja por escolha própria ou pelo papel social que é esperado dessa mulher. E uma delas é justamente a idealização da maternidade, no sentido de romantizar essa fase da vida”, pontua a psicóloga. Nos últimos anos, vale registrar, elas passaram a ocupar cada vez mais espaços, sendo não apenas dedicadas aos cuidados no ambiente doméstico como também provedoras ou coprovedoras de um sem-número de lares. Para se ter uma ideia, o percentual de domicílios brasileiros comandados por mulheres saltou de 25%, em 1995, para 45% em 2018, conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Apesar das mudanças, Gabriella lembra que propor uma visão sem tabus sobre a maternidade ainda causa estranhamento, pois a versão “culturalmente aceita e esperada é a de um conto de fadas”.
Pandemia torna debate ainda mais urgente
E a pandemia da Covid-19 acentua tanto as dificuldades quanto a autocobrança. As medidas de enfrentamento causaram alterações não planejadas nas dinâmicas de trabalho, de estudo e dos lares. “A Malu, desde que completou 1 ano, ia para a escolinha. Mas, então, as aulas foram suspensas, e agora, que estou em casa com ela, me cobro mais ainda. Eu fico pensando que tenho que fazer que ela coma melhor e, quando peço algo em um restaurante por não ter tido tempo de preparar algo, me sinto mal”, relata Ana.
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“Quando a gente é mãe, existe uma necessidade muito grande de não errar, de não ficar deprimida, de não ficar nervosa. É um peso muito grande”, comenta e logo se interrompe: “E é horrível falar isso, falar que há um peso na maternidade, porque sentimos culpa até em admitir”, conclui, depois de uma pausa.
Dividida entre o trabalho e os cuidados com a filha, Ana precisou interromper as atividades de um empreendimento, a marca de lingeries Picê. Mais tarde, abriu outro, voltado para artesanato em macramê. “Mas, agora, quem compra de mim sabe que só vou entregar quando conseguir, porque a prioridade é a Malu”, comenta.
A artesã estabelece que se sente privilegiada por conseguir se dedicar à filha em período integral enquanto muitas mulheres, quando em empregos formais, precisam se limitar à dedicação mais exclusiva durante a licença-maternidade, que tem duração legal de quatro meses – período insuficiente para a manutenção do aleitamento materno, dado que a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendam iniciar a amamentação nos primeiros 60 minutos de vida e mantê-la como forma exclusiva de alimentação até os 6 meses de idade e, de maneira complementar, até os 2 anos. Em relação ao tema, também é apontado como problemático que, no Brasil, a licença-paternidade seja restrita a até 20 dias – algo que contribui para a perpetuação da desigualdade de gênero, tanto no que diz respeito aos cuidados dos filhos e da casa quanto em relação à ocupação de cargos de chefia e aos ganhos salariais.
“Nunca me senti tão sobrecarregada em toda a minha vida e estou dentro de casa, o que parece um paradoxo. Participar ativamente desse debate (sobre maternidade real) e trocar essas experiências com outras pessoas tem me ajudado muito e me faz perceber que não é só comigo, que o problema não sou eu”, garante ela.
Redes sociais se tornaram espaço de respiro
“As mídias sociais têm sido ferramentas essenciais para o compartilhamento de experiências, suporte mútuo e reflexão”, reconhece Sabrina Finamori, professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que situa que essas discussões vêm na esteira do movimento em torno do parto humanizado e de coletivos de mães – que põem em pauta os sentidos sociais da maternidade. “Toda essa movimentação é fundamental tanto para problematizar a realidade da maternidade como para articular reivindicação de direitos”, avalia.
A estudiosa defende que é fundamental que a reprodução deixe de ser vista como um encargo exclusivamente feminino ou mesmo de modo tão individualista. “Em alguma medida, o custo da reprodução deveria ser coletivamente compartilhado, por meio tanto de políticas mais inclusivas das empresas como também do poder público”, indica Sabrina, lembrando que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) atribui a responsabilidade de garantir os direitos das crianças não apenas à família, como também à comunidade, à sociedade em geral e ao poder público.
Lembrando um provérbio africano – “é preciso uma aldeia para se educar uma criança” –, Ana concorda que uma rede de apoio tornaria mais fácil o seu dia a dia, algo que ficou completamente inviabilizado em função das medidas de isolamento físico exigidas para o enfrentamento do novo coronavírus. Neste período, as trocas de experiências por meio de grupos nas redes sociais têm sido um alento.
Mulheres têm necessidades que a maternidade não satisfaz
O apoio encontrado em ambiente virtual, todavia, não é suficiente se a mulher está cercada de pessoas que, além de não ofertarem apoio, cobram que ela dê conta de tudo – e ainda pareça “muito bem, obrigada”. “Recebi hoje (no dia da entrevista) uma paciente que chorava o tempo todo. Ela estava frustrada e se sentia péssima. A maternidade real assustava ela”, relata a ginecologista e obstetra Quesia Villamil.
A profissional não se surpreendeu ao identificar, durante o atendimento, que aquela mulher se percebia reduzida a apenas uma fração de si – a de mãe –, como se outras dimensões de sua identidade tivessem sido apagadas. “Ela tem um filho de 1 ano e 7 meses. Quando perguntei sobre os métodos contraceptivos que usava com o marido, ela desabou: contou que havia transado apenas duas vezes nesse período”, comenta.
Quesia conta que, nos atendimentos, busca ajudar suas pacientes a entender que elas têm suas próprias singularidades e que não é um ato de egoísmo estarem atentas às suas próprias demandas. Muitas mães, aliás, recorrem a uma uma norma de segurança aérea para ilustrar a importância do estar bem consigo primeiro para, então, cuidar de seus filhos: “Em caso de despressurização da cabine, máscaras de oxigênio cairão automaticamente. Puxe uma das máscaras, coloque-a sobre o nariz e a boca ajustando o elástico em volta da cabeça e respire normalmente, depois auxilie a criança ao seu lado”.
É preciso cuidar das mães
O cuidar de si própria, entretanto, soa como um conselho impossível para muitas mães que são percebidas apenas como agentes de cuidado para com o outro. “No passado eram famílias grandes que cuidavam dessa mulher e de seu bebê e existia a crença de que a canja de galinha estimulava a produção do leite – o que não é verdade. Mas, quando alguém prepara com carinho uma refeição para essa mulher, o bem-estar promovido a ela vai, sim, estimular que o leite desça”, observa Bel Cristina, doula desde 2008, ao defender a importância de que as mães recebam cuidados.
Ela lembra que, agora, o núcleo familiar mudou e, além disso, muitas são mães solo. No país, de acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 11,6 milhões delas precisam se virar sozinhas – e 56,9% dessas mulheres estão abaixo da linha da pobreza. “Muitas filhas moram longe das mães, têm poucas irmãs e não possuem um parceiro. Então essa rede não chega com a mesma qualidade e, na pandemia, essa solidão é maior ainda”, indica Bel, que é integrante da coordenação do Movimento Bem Nascer, pioneiro em criar redes de apoio para gestantes em Belo Horizonte e que oferece assistência gratuita às mães.
“Por conta do coronavírus, essas mulheres, em diversos arranjos familiares, vão passar por um puerpério mais solitário e vão precisar lidar com o excesso de cobrança de todos os lados – o que não é novo: essas cobranças já estão aí há muito tempo. Acontece que, quando o bebê nasce, não tem uma receita pronta: não tem hora de banho ou hora de dormir. O bebê tem o ciclo de adaptação externa. Concomitantemente a isso, vem os olhares externos que vão julgar essas mães, posta entre pressões. E aí vem a autocobrança, a sensação de incapacidade, de que não está sendo uma boa mãe…”, avalia Bel.
A membro da equipe multidisciplinar do Instituto Nascer lembra que a sensação de culpa acompanha as mães desde a gestação. “São muitos os fatores que provocam esse sentimento e levam à autopunição. Se a mãe opta pelo parto fisiológico, por exemplo, vai se deparar com obstáculos, principalmente se estiver na rede privada – e isso já é um primeiro choque”, comenta. O Brasil, diga-se, é o segundo país que mais realiza a cesárea, segundo estudo que foi publicado em 2018 pela revista científica Lancet e que alertava para a epidemia mundial deste parto, recomendado apenas em casos específicos. As maternidades brasileiras recorrem à operação em 55% dos nascimentos. A estimativa é que o procedimento só seja necessário a até 15% deles.
“E ainda que consiga um atendimento humanizado, essa mulher seguirá sujeita a frustrações por idealizar o acontecimento. Na hora do parto, pode acontecer de a mãe pedir anestesia, e, por isso, sentir que não conseguiu ser forte o suficiente”, prossegue Bel, que desenha outros cenários mais traumáticos, como casos de violência obstétrica – “que acontece no momento da gestação, parto, nascimento e/ou pós-parto, inclusive no atendimento ao abortamento. Pode ser física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas”, como explica uma publicação, de 2017, do Ministério da Saúde sobre o tema.
A doula acredita que o sentimento de culpa das mães tem múltiplas raízes e, para amenizá-lo, há uma principal alternativa: “Adotar um olhar e uma prática de cuidado para com elas, de forma que não se cobrem tanto, evitem autopunição e sempre se lembrem que cada mulher tem sua história, e toda história é válida”.
Mini-entrevista com a psicóloga e psicanalista Gabriella Cirilo, que dedica-se, atualmente, ao mestrado pela Faculdade de Medicina da UFMG.
Para que a maternidade não se torne esmagadora, provocando fenômenos como o mommy burnout, acredita que uma visão desmistificada do que significa ser mãe faz diferença?
Há vários estudiosos da temática que defendem essa desconstrução dessa imagem cristalizada da maternidade, como a filósofa e historiadora francesa contemporânea, Elisabeth Badinter (autora do livro “Um amor conquistado: o mito do amor materno”, de 1980). Ela defende a desmistificação desse comportamento instintual materno, ou seja, a desconstrução da ideia que todas as mulheres nascem com essa capacidade materna natural. Badinter defende que a maternidade é influenciada pela época, cultura e principalmente pelas questões pessoais e sociais daquela mulher. Portanto, a maternidade é algo construído e principalmente desejado e não natural, no sentido biológico.
Já a visão da psicanálise, a partir da metade do século XX, com os estudos de Jacques Lacan (1901-1981), defende uma diferenciação do significado de ser mãe e o que é uma mulher. Ou seja, a mulher não se torna “mais mulher” ou mais completa com a chegada desse filho. Há algo de uma insatisfação que a mulher sente, que necessariamente, o filho não resolve. Então, a partir da teoria psicanalítica de Jacques Lacan, cada mulher tem sua própria singularidade e lidará com a sua insatisfação a sua própria maneira – seja sozinha ou com outras pessoas, seja no trabalho, estudo, atividade física, e tantas outras coisas. Enfim, ela pode ser e construir o que ela deseja, inclusive ser mãe. Ou não.
São comuns os relatos, em grupos que se dedicam a discutir questões da maternagem, a presença de um sentimento de culpa associado ao exercício da maternidade. Esta é uma sensação pode ser minimizada ao se afastar das idealizações?
Para a psicanálise – considerando apontamentos de Lacan e também de Sigmund Freud (1856-1939) –, a relação mãe-bebê é, como qualquer outra relação humana, complexa e causa muitos sentimentos de ambivalência, ou seja, simultaneamente, coexistem sentimentos de amor e de ódio. Porém, culturalmente falando, o amor materno é visto como puro, sagrado e incondicional. Partindo desse ponto, a psicanálise observou que, durante os primeiros momentos da vida daquele sujeito, a mãe e o bebê se fundem de uma maneira subjetiva profunda, ao ponto da mãe sentir um grande sofrimento ou culpa ao se separar do filho, seja para tarefas simples do dia. Ela tem a necessidade de ficar o tempo todo com o filho, como se este fizesse parte dela.
Contudo, irá chegar um momento que haverá essa disjunção, seja com a possível entrada da figura do pai, ou, às vezes, com a retomada da vida profissional ou até mesmo diante da necessidade de a criança ir à escola. Então, essa mãe irá se ausentar em alguns momentos para realizar outras funções. E, sim, isso implica uma perda, um sofrimento para ambos, para a mãe e para o filho. Porém, é preciso ter consciência que essa singela separação é necessária, já que, a partir dessa ausência, tanto a mãe quanto o filho começam a se reconhecer como pessoas diferentes. Assim, conforme aquela criança vai crescendo, essa sensação vai sendo cada vez mais ressignificada para as duas partes.
Hoje, há mulheres que falam abertamente, através de redes sociais, sobre a experiência do ser mãe para além dos tabus e idealizações. Mas, ainda que esse movimento que busca desmistificar a maternidade venha se tornando mais presente, é notável que esse debate ainda gera estranhamento. Por que ainda é tão complicado assumir que a maternidade não se parece tanto com aquele comercial de margarina?
Estamos no século XXI e sabemos das múltiplas jornadas que uma mulher possui, seja por escolha própria ou pelo papel social que é esperado dessa mulher. E uma delas é a justamente a idealização da maternidade, no sentido de romantizar essa fase da vida. Acredito que, a partir da internet, com as redes sociais, possibilidade de postar seus próprios vídeos, blogs, e sites, abriu um espaço importante para dialetizar, discutir e trocar vivências sobre qual é a real e verdadeira experiência de ser mãe. Porém, ainda causa estranhamento, sim, pois a ideia da maternidade ou da família culturalmente aceita e esperada é aquele “conto de fadas” ou, como você disse, “um comercial de margarina”