Combinação

Neonômades: aliando o trabalho ao lazer

Virtualização das dinâmicas laborais durante a pandemia permitiu uma mudança na rotina profissional


Publicado em 21 de setembro de 2021 | 03:30
 
 
 
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Para a maioria das pessoas, programar uma viagem é um exercício que exige a conciliação das agendas profissional e pessoal. Afinal, colocar o pé na estrada, para muitos, é quase sinônimo de estar de férias – ou, no mínimo, de estar de folga por dias suficientes para um passeio turístico. Mas há também quem consiga combinar, em um mesmo itinerário, viagem e trabalho. Um movimento que se ampliou com a aceleração da virtualização das dinâmicas laborais durante a pandemia, quando o home office foi incorporado à rotina de 11% dos trabalhadores ativos no país, conforme levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Com a possibilidade de trabalhar de qualquer lugar, sem a necessidade de se estar sediado em um escritório, mais pessoas têm aproveitado a chance de mudar de ares. Há quem alugue um sítio com boa estrutura de internet para passar alguns dias, semanas ou até meses. Tem também quem prefira passar um período em um resort com a família. Desejo que obrigou redes de hotéis a incorporar espaços de coworking no catálogo de produtos. E há também os que experimentam uma dinâmica meio neonômade, conhecendo o mundo sem precisar se afastar do trabalho para isso. 

É o caso de Rafael Scodelario, 32. Identificando-se como um turista inveterado, o diretor da Escodelar Inteligência Imobiliária conta que já tinha uma intensa rotina de viagens antes de 2020. Agora, a tendência é que o turismo se incorpore de vez ao cotidiano dele. Só neste ano, o paulista esteve em Jericoacoara, no litoral nordestino, em Cancún e em Tulum, no México, em Orlando, nos Estados Unidos, e na África do Sul, no continente africano. 

Mas tanto vaivém não seria uma ameaça à produtividade? “Pelo contrário! Quando viajo, fico mais relaxado e tenho mais ideias. Por isso, sinto que minha performance não fica prejudicada, mas sim beneficiada”, argumenta, acrescentando que essa é uma impressão pessoal que se comprova em termos de resultados. Durante o mês em que Scodelario misturou lazer e trabalho se hospedando em quatro resorts diferentes na América Central, a empresa que ele dirige bateu recordes de vendas. “Mesmo de longe, consegui coordenar as ações, e alcançamos patamares inéditos para aquele mês”, observa. 

Estímulo criativo 

A experiência do CEO está em consonância com o que defende Lella Rodrigues, que se identifica como especialista em performance transcendente. “Quando nos permitimos trabalhar em um novo ambiente, ao mesmo tempo em que viajamos, vamos nos proporcionando novas vivências, que vão estimular nossos sentidos e ser um combustível para a criatividade”, expõe. Para ela, a produtividade é potencializada sobretudo quando o sujeito compreende que todas as dimensões de sua própria vida estão integradas. “É quando vamos mudar a lógica e compreender que o profissional e o pessoal não estão em disputa, de forma que posso combinar o turismo com o trabalho”, salienta. 

Evidentemente, a experiência de pôr o pé na estrada a lazer vai se diferir da mudança de ares enquanto se está trabalhando. “Por isso, é importante que a pessoa já vá para o lugar tendo em mente que a dinâmica será outra. Passar a noite em um evento, por exemplo, não vai ser uma boa escolha no segundo caso. Então, é fundamental que o sujeito vá se preparando, inclusive no que se refere a suas emoções e sentimentos. Dessa maneira, podemos evitar que a viagem se torne uma cilada”, aconselha. 

E não só o sujeito deve estar ciente de seus próprios desejos e compromissos, sabendo equilibrá-los, como também precisa garantir que sua equipe e suas operações estejam maduras para se adequar e funcionar dessa forma. “Quem vai adotar esse estilo de vida precisa estar seguro em relação à sua rotina, às automações da operação e à sua equipe, que precisa ser integrada por indivíduos que consigam desempenhar suas funções com autonomia”, sublinha. 

‘Arrumar a casa’. Foi assim na empresa de Rafael Scodelario. Ele conta que, com a chegada do coronavírus ao país, a imobiliária rapidamente entendeu que havia necessidade de implantar soluções tecnológicas que facilitassem o contato de clientes e as interações entre a equipe. “Criamos mecanismo de tour virtual e de assinatura de contrato digital, de forma que todas as etapas de compra, venda ou aluguel de um imóvel possam ser feitas remotamente. Também investimos em ferramentas que nos permitem acompanhar a produtividade de cada corretor e prestar suporte”, conta. 

“Então, não foi do dia para a noite. Eu precisei primeiro ‘arrumar a casa’, deixar tudo funcionando e entender como eram os processos da empresa e os meus próprios processos. Só depois é que vislumbrei a possibilidade de adotar esse estilo de vida”, conta.  

Scodelario reconhece que, além de não se adequar à realidade trabalhista de diversos setores, a solução ainda assusta os mais conservadores. Para ele, no entanto, tanto receio não faz sentido. “É a mesma coisa de quando estamos fazendo home office em casa. Se a pessoa não conseguir estabelecer uma rotina, ela vai se distrair facilmente ou pode cair na pilha do trabalho e não conseguir relaxar. O paralelo é o mesmo se o sujeito está viajando. Então, o conselho que eu dou é saber discernir o que é prioridade e o que é urgência e entender qual é o momento de trabalho e o momento de curtir”, recomenda. 

Em família 

O engenheiro químico Aldo Kenji Miyauchi, 41, que atua no departamento de vendas de uma empresa do ramo de sistemas de energia, sempre lidou com viagens a trabalho, que, de alguma maneira, tentava converter em oportunidades de turismo. “Nos itinerários mais longos, costumava aproveitar para conhecer melhor os lugares em que meus clientes viviam”, lembra. 

Contudo, por causa da pandemia, as visitas presenciais acabaram suspensas. Em regime de home office emergencial desde março do ano passado, ele recentemente viveu o que classifica como uma experiência única. Durante uma semana, Miyauchi viajou para um resort com a mulher dele, Priscila, e os dois filhos do casal, Eduardo, 5, e Louise, 2. Detalhe que ele não estava de férias ou folga nesse período. 

“O passeio foi bom para aliviar o estresse, e, se tiver novas oportunidades, farei de novo. Até porque o rendimento no trabalho foi muito bom”, garante, reconhecendo que, idealmente, preferiria estar desocupado para, durante aqueles dias, curtir integralmente o tempo ao lado da família.  

Uma nova demanda no setor de turismo 

Na avaliação de Lella Rodrigues, cada vez mais profissionais devem começar a entender que viagem não é necessariamente sinônimo de férias. “Noto que essa é uma tendência que vai ganhando espaço e acredito que as empresas do setor de turismo que não se adaptarem a essa nova realidade tendem a ficar para trás”, argumenta. 

De fato, o Grupo Tauá de Hotéis confirma que, por causa da pandemia, viu crescer a busca por hospedagem combinada com a possibilidade de home office. Tanto que, no ano passado, o empreendimento lançou pacotes exclusivos para esse público. 

“Adotamos uma ação estratégica, digital e comercial que gerou, ao longo de 2020, superação de receita, volume de reservas e ocupação, acima da meta e em comparação com o restante do setor. Uma das iniciativas foi justamente a disponibilização do espaço home office nos quatro resorts da rede”, relata a assessoria do empreendimento.

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