Criação

Nova chupeta? Celular e tablet podem prejudicar desenvolvimento de crianças

Especialistas e estudos recentes indicam que é preciso parcimônia ao recorrer a aparelhos como celulares para acalmar ou entreter pequenos


Publicado em 21 de abril de 2019 | 03:00
 
 
 
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É uma cena cada vez mais corriqueira de se ver: o bebê, incomodado com a situação ao seu redor, chorando ou agitado, é distraído por uma tela de smartphone ou tablet, que tem efeito instantâneo e praticamente hipnótico. Para os pais é uma solução fácil, portanto tentadora, mas até que ponto vale a pena delegar uma responsabilidade fundamentalmente humana a um aparelho tecnológico? 

Pesquisas recentes demonstram que o uso de telas digitais pode atrasar o desenvolvimento de determinadas habilidades nas crianças. Um dos estudos realizado na Universidade de Calgary, no Canadá, concluiu que os bebês que passavam mais tempo diante desses aparelhos podem ter mais dificuldade em se comunicar, sociabilizar ou resolver problemas do que os que tinham o uso restrito.

Publicado no início do ano no periódico “Jama Pediatrics”, o estudo consultou cerca de 2.500 mães, entre 2011 e 2016, sobre quanto tempo seus filhos passavam em dias úteis e aos fins de semana vendo televisão, filmes ou vídeos, jogando videogames ou usando computadores, tablets e outros aparelhos com telas. Também foram respondidos questionários sobre o progresso das crianças com uma série de marcos de desenvolvimento quando tinham 2, 3 e 5 anos. 

As descobertas sugerem que antes que qualquer atraso no desenvolvimento seja notado, há um aumento no tempo de uso das telas. No entanto, a pesquisa não identificou uma relação direta entre o uso dos aparelhos e o atraso no desenvolvimento, podendo este estar ligado também a outros fatores. 

Essa possível relação já era uma suspeita de Priscila Zavagli Suarêz, 35, mãe de Stella, de 1 ano, antes mesmo que a pequena nascesse. A bebê não tem acesso a nenhum aparelho eletrônico, a não ser para videochamadas com a avó e o padrinho, que moram longe, e a jornalista pretende mantê-la assim durante toda a primeira infância. Quando permitir o uso, ela diz que tudo será dosado e monitorado. 

“A mim incomodava bastante a forma como eu a tecnologia vinha sendo usada tanto no meu convívio próximo quanto por desconhecidos que via na rua, principalmente em relação a bebês. Via os celulares e tablets fazendo as vezes de chupeta, mesmo”, conta. “E, talvez pela forma como fui criada e vi as coisas acontecerem na minha vida, eu não acredito nisso como uma forma de boa educação. Bebês precisam de estímulos, de atenção, de serem olhados, observados. Eu não renego a tecnologia. Mas me incomodava o fato de as crianças terem um cuidado terceirizado. E a forma como elas reagiam quando na ausência de tecnologia era um agravante”, acrescenta.

Linguagem. A conduta adotada por Priscila e sua percepção vão ao encontro das conclusões preliminares de um estudo que vem sendo conduzido no Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia da USP de Bauru. A pesquisa tem foco na influência desses equipamentos no desenvolvimento da linguagem das crianças e foi motivada por uma observação clínica, como explica Simone Hage, professora do departamento e orientadora do trabalho.

“Sou responsável por um estágio em que recebemos meninos com queixas relacionadas à linguagem, e começamos a receber relatos de atraso na fala, ausência de comunicação. Alguns deles até com suspeita de autismo, por não interagirem. E o que notamos na sala de espera foi que essas crianças frequentemente estavam com telas nas mãos. Dou curso em várias partes do país, e essa questão também apareceu em outros lugares, por isso decidimos investigá-la”, explica Simone. 

A professora relata que a produção acadêmica sobre o assunto ainda é escassa e relativamente recente, mas os indicativos são de que, quanto maior o tempo de uso das telas, menor o desenvolvimento da linguagem. “As crianças no primeiro ano de vida ainda não falam, mas já estabelecem atos comunicativos intencionais. E, nesse processo, é muito importante o papel do adulto, que interpreta o choro e outras manifestações. Essa relação de significação contribui para que o cérebro se desenvolva e estabeleça conexões para o aparecimento da linguagem verbal. Já a tela de mão não possibilita isso”, afirma.

Ainda não há dados estatísticos consolidados, porém já foi constatado que crianças com uso controlado das telas e maior presença e interação dos pais têm desenvolvimento melhor. Simone ressalta, no entanto, que não é necessário impedir o uso das mídias digitais pelas crianças. O importante é que o tempo de uso seja controlado e que haja um adulto para fazer a mediação. “A recomendação da Associação Americana de Pediatria é que, até os 18 meses, os bebês não tenham mesmo nenhum contato. Porém, desse ponto em diante, é fundamental o acompanhamento. Porque pode até ser uma coisa benéfica, afinal dá acesso a coisas com as quais ela não necessariamente teria contato presencial. Mas é preciso um adulto para interpretar, analisar, brincar junto. A responsabilidade não pode ser delegada ao eletrônico”, conclui.

Recomendações

Atualizada. Em 2016, a Academia Americana de Pediatria (AAP) atualizou suas recomendações sobre o tempo que crianças devem permanecer expostas às telas de TVs, smartphones e tablets.

Até 18 meses. Nenhuma exposição diária às telas.

Entre 2 e 5 anos. Uma hora por dia, sob mediação de um tutor. A programação deve ser de qualidade e apropriada à idade. Todavia, a entidade recomenda que sejam priorizadas atividades e brincadeiras criativas e que promovam interação, dispensando eletrônicos.

A partir dos 6 anos. Sempre monitorando o uso dos dispositivos pelas crianças, os pais devem determinar a quantidade de tempo gasto diariamente.

Aparelhos podem ser aliados

Hoje, é quase impensável dizer de um processo de alfabetização que despreze o ambiente virtual. E, afinal, smartphones, tablets e computadores podem, sim, ser aliados à educação dos pequenos. É o que indica Isabel Frade, pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) e professora da Faculdade de Educação (FAE) da UFMG.

“Os objetos culturais – sejam livro, brinquedo ou smartphone – têm a ver com como as pessoas fazem a mediação”, expõe, lembrando que, atualmente, o acesso à internet se tornou questão básica na vida em sociedade. Todavia, alerta que as famílias devem evitar a naturalização do uso dos dispositivos como objetos de distração, pois “não se podem abandonar outras oportunidades de desenvolvimento sensorial, cognitivo e cultural, sobretudo para crianças”.

Chave para o uso saudável dos dispositivos tecnológicos é a mediação, avalia Isabel, que é também presidente da Associação Brasileira de Alfabetização. “Assim como a criança precisa do outro para ler para ela, para acessar um livro, também vai precisar de alguém por perto para comentar, para mediar seu contato com estes dispositivos. Até porque todo processo educacional e cultural exige uma mediação mínima”. Isabel menciona que, na contemporaneidade, “há literatura digital, com sonoridade, imagem em movimento, que produzem significado enquanto a criança a explora, sendo que quem faz essa ponte são os pais ou professores”, diz.

Adaptação. Funciona como bom exemplo de como as crianças são capazes de combinar as diversas experiências, que vão se somando por meio de diferentes ferramentas, a forma como pequenos, com entre 2 e 3 anos, brincando com bloquinhos em uma aula, começaram a emular o ato de fazer selfies – história relatada a Isabel por outra professora. “Notamos que há a composição de um conjunto de experiências. O que ocorre aí é um jogo simbólico, de imaginação infantil que já está repercutindo a disseminação dos usos dos gestos corporais, tudo é interligado”, reflete a professora.

“O contato com textos multimodais é uma necessidade na alfabetização, já que as formas de ler um texto impresso não são suficientes para dar conta de um texto da cultura digital, em que palavras e imagens competem e convivem no mesmo suporte. Por isso, as escolas têm que pensar como mudam as percepções a partir do próprio uso”, sustenta a professora, que cita, de forma elogiosa, exemplos de escolas da rede municipal de BH que integram ferramentas como WhatsApp na formação de seus alunos.

É por meio de experiências desse tipo que crianças entre 6 e 7 anos que escrevem com papel e caneta e também em teclados conseguem compreender que, por exemplo, “vai ser mais interessante fazer um cartão a mão, sabendo que podem explorar escritas que seriam inviáveis em um computador”. Algo que Isabel interpreta como “resultado de uma ampliação de repertório”. “A escola tem que incorporar o digital sem deixar de usar as ferramentas tradicionais. Objetos culturais não são substituíveis”, finaliza.

Pais em dúvida

A maquiadora Jheniffer Ramos, 25, mãe de Heitor, 3, permite que o filho veja vídeos no Youtube durante alguns minutos por dia e, aos fins de semana, o acompanha vendo filmes de animação. “Geralmente, as mães estão exaustas devido à grande carga que é cuidar da cria, da casa, trabalho. A televisão ou o celular acabam sendo um escape para alguns minutos de sossego. Mas não sou a favor do uso contínuo, a criança deve ter outras atividades”, afirma.

Mais do que uma questão que tem origem na relação com as crianças, a jornalista Priscila Zavagli Suarêz, 35, mãe de Stella, 1, acredita que os pais que têm dificuldade em dosar o uso de mídias digitais pelos filhos geralmente têm problemas em dosar também o seu próprio uso. “Sobretudo depois de me tornar mãe, observo que não é só com o uso de tecnologias pelas crianças que devemos nos preocupar. Os pais também precisam repensar seu próprio uso. Mais do que o dos filhos, talvez. O que a gente mais vê é um pai ou mãe que entregam um celular para uma criança para que eles próprios possam ficar com a cara em outra tela”, critica.

A pediatra Daniela Mendes Pereira corrobora a visão de Priscila a partir de sua observação clínica no consultório. “As crianças que recebo com problemas pelo excesso de uso de tablets ou smartphones em geral estão em famílias que interagem menos entre si, como um todo”, observa. 

Às vezes isso acontece por displicência dos pais, mas há também casos em que eles não sabem mesmo que o comportamento é prejudicial. No curso da pesquisa realizada no Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia da USP de Bauru e coordenada pela professora Simone Hage, sobre a forma como as telas eletrônicas afetam o desenvolvimento das habilidades de linguagem nas crianças, algo que espantou os pesquisadores foi o quanto os pais estão em dúvida quanto à forma como dosar essa relação. “Não previmos isso: muitos deles vieram até nós buscando orientação sobre como agir. Oferecem as telas de mão muitas vezes numa tentativa de otimizar o desenvolvimento, colocar o filho no mundo tecnológico precocemente”, conta Simone. “O importante, novamente, é não delegar responsabilidades que são dos pais aos eletrônicos e estabelecer limites para o uso”, acrescenta.

Uso de smartphones e tablets por crianças e adolescentes pode acarretar problemas de saúde

Alterações comportamentais. Analisando dados de cerca de 40 mil crianças e adolescentes, de 2 a 17 anos, pesquisadores da Universidade de San Diego e da Universidade da Georgia, nos EUA, identificaram que o uso de equipamentos eletrônicos desencadeia alterações comportamentais, afetando a estabilidade emocional e aumentando a propensão para transtornos de ansiedade e depressão.

Menos curiosos. De acordo com o estudo publicado no periódico científico “Preventive Medicine Reports”, em 2018, até mesmo a curiosidade de aprender coisas novas pode ser reduzida. No caso daqueles que usam as telas multimídia por mais de sete horas por dia, 22,6% dos adolescentes demonstravam desinteresse – contra 9% dos que usavam por uma hora por dia.

Mais impacientes e depressivos. Falando do temperamento, aqueles que ficam mais tempo usando essas ferramentas tecnológicas têm o dobro de chance de demonstrarem sinais de impaciência e de serem diagnosticados com quadros de depressão. 

Indisciplina. Muito tempo dedicado ao ambiente virtual também causa prejuízo disciplinar. Os pesquisadores observaram que 42,2% dos adolescentes, entre 14 e 17 anos que usam smartphones e tablets por mais de sete horas por dia deixam de concluir tarefas. O índice cai para 16,6% entre os que usam os dispositivos por até uma hora diária.

Descanso prejudicado. Em uma publicação de 2016, cientistas da King's College, de Londres, apontaram, acompanhando mais de 125 mil crianças e adolescentes com entre 6 e 19 anos, que o uso desses dispositivos causa prejuízos ao sono – provocando reações como cansaço, sono diurno, desatenção, dores de cabeça e alterações de humor.

Atraso no desenvolvimento. Em apresentação no Encontro de Sociedades Acadêmicas Pediátricas de 2017, em São Francisco, estudiosos da Universidade de Toronto, no Canadá, citaram aumento de 49% nos riscos de atraso no desenvolvimento da fala para cada 30 minutos de tela. O estudo envolveu cerca de 900 crianças com idade entre 6 meses e 2 anos.

Saúde ocular comprometida. O Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão, através de pesquisa, checou que o volume de alunos com visão abaixo dos índices considerados saudáveis foi de 25,3% – um recorde. O governo nipônico apontou o tempo de tela como principal raiz do problema.

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