Para a maioria dos pais, uma novidade; para alguns, uma escolha ou até uma obrigação. O ensino doméstico provoca debates acalorados nos meios jurídico, pedagógico e político. A prática conhecida como “homeschooling” é adotada por pelo menos 11 mil famílias no Brasil, sendo 13% em Minas Gerais, segundo dados da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned). De acordo com a entidade, os números ainda podem ser quatro vezes maiores porque muitas famílias não se declaram “homeschoolers” para evitar confusões na Justiça, ainda que a educação caseira não seja crime.

Com algumas variações, os pais que optam por não levar os filhos à escola veem nessa instituição um ambiente hostil e que não contribui para o desenvolvimento dos indivíduos. “Nenhum pai tira os filhos das escolas por um único motivo. Há motivos negativos e positivos. Entre os motivos positivos, apontado por um terço dos pais, está o fato de poder oferecer aos filhos uma educação mais personalizada, que trabalha os potenciais, os dons e as áreas de interesse da criança. Os motivos negativos seriam péssima educação escolar, bullying, pressão social inadequada, violência, doutrinações religiosas, políticas e ideológicas”, explica o presidente da Aned, Rick Dias.

O perfil apresentado por Rick mostra que, no fundo, essas famílias querem participar ativamente da educação dos filhos como um todo, desde a alfabetização até a consciência ambiental. Exemplo disso é o casal formado pela turismóloga Lis Oliveira, 37, e pelo gerente comercial Jônatas Oliveira, 33, de Pouso Alegre, no Sul de Minas.

“As questões que pesaram na minha escolha são as que considero pilares da formação humana. A educação alimentar, por exemplo, que é um dos pontos fracos da sociedade moderna, porque desaprendemos a comer. O contato com a natureza, porque o ensino tradicional não cumpriu seu papel de conscientização ambiental. Inteligência emocional é outro pilar, porque os adultos não conseguem lidar com seus sentimentos, e isso interfere na sua vida profissional e no relacionamento interpessoal. E, por fim, a pedagogia. Eu discordo da alfabetização forçada a partir de quatro, cinco anos”, argumenta a mãe.

Lis conta que o seu filho mais velho estudou em uma escola até os 3 anos, mas a mudança de cidade da família abriu as portas para uma alternativa. “Tenho três filhos, de 11, 7 e 5 anos. Não gostamos de algumas escolas que visitamos, e a que me agradava ficava inviável por questões de distância e investimento, então me deparei com o universo paralelo da desescolarização. Pesquisei muito e encontrei grupos de apoio”.

No Brasil, a ideia eclodiu em 2011 e ganha mais adeptos desde então. “A Aned foi fundada em 2010, em Belo Horizonte, onde esse movimento começou a crescer. Entre 2011 e 2018, a educação domiciliar cresceu cerca de 2.000% e tem uma taxa de crescimento de 55% ao ano”, diz o presidente da associação.

Mas o caminho fora do comum na educação dos filhos está cheio de desafios. “É preciso desenvolver um planejamento, um calendário, buscar orientação pedagógica. Tem muita coisa gratuita e muitos serviços que a gente pode contratar. Professores particulares para matérias com as quais não temos tanta afinidade também são uma ótima pedida”, conta Lis. Além disso, o desconhecimento do homeschooling deve ser enfrentado. “Muita gente fala assim: você está privando seu filho da educação, você está criando seu filho em uma bolha. Mas todos esses preconceitos vão à lona quando as pessoas conhecem as crianças e se surpreendem com suas habilidades”, garante Lis.

Contato com sociedade
Uma das principais perguntas que as famílias educadoras respondem é se tirar o filho da escola não estaria privando as crianças do contato com a diversidade do mundo externo. Esse argumento é rebatido por Lis. “Quem julga o ensino domiciliar carente em socialização fala sem propriedade. Muitas escolas, principalmente particulares, são infinitamente mais limitantes quando falamos em diversidades. Eu frequentei escolas em quatro cidades diferentes e era muitas vezes a única aluna morena ou onde a religião católica era supremacia”. Segundo ela, o contato de seus filhos com o outro se dá em ruas, mercados, praças, aulas de dança, de futebol e outros ambientes. “Nós não vivemos trancados. Só na quarentena mesmo”, brinca.
 
Por mais que pais educadores se esforcem para transmitir conhecimento aos filhos, essa escolha é criticada por especialistas em educação. “Muitas das famílias brasileiras não teriam condições de suprir minimamente do ponto de vista da transmissão da cultura aquilo que a escola pode oferecer. Temos que lembrar que a escola tem currículos discutidos e aprovados, professores preparados, materiais preparados, e eu me arrisco a dizer que poucas famílias teriam capacidade de fornecer aos seus filhos um ensino com a qualidade e a extensão que a escola é capaz de oferecer”, analisa o professor Marcus Taborda, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Socialização 
Se ensinar o conteúdo de diversas matérias é tarefa difícil para os pais, o professor cita ainda outra missão que, segundo ele, só a escola pode cumprir – a socialização. “A escola também é uma das instituições que preparam a criança para o mundo adulto. Ou seja, ela é um lugar de sociabilização, de vivências políticas, de encontro com a diversidade. Por isso ela prepara essas pessoas para a vida em sociedade. Isso jamais acontece no espaço doméstico, que vai, normalmente, reproduzir aquilo que a família tem como concepção de sociedade, dos pontos de vista religioso, sexual, político etc.”, diz.
 
O homeschooling no Brasil enfrenta ainda resistências impostas pela situação econômica das famílias. A Aned não vê a prática como um método elitista e pontua que a maioria dos pais educadores é de classe média e substituiu o alto valor de mensalidades pelo investimento no ensino em casa. Marcus Taborda, por outro lado, analisa que esta não é a realidade da maioria dos brasileiros. “Há boa parte da população que depende da escola pública, incluindo parte significativa da classe média, que não teria condições de fazer uma educação doméstica porque não tem estrutura econômica. E, para você formar uma pessoa culturalmente, exige um lastro cultural muito amplo, por isso existem tantos professores especialistas”, analisa.
 
A salgadeira Adriana Cristina Rocha, 35, não conhecia o ensino doméstico desde que começaram a valer as medidas restritivas em Minas Gerais e não acredita que o método serviria para a família dela. Seu filho, de 11 anos, aluno do sexto ano de uma escola estadual no bairro Jardim Vitória, na região Nordeste de Belo Horizonte, enfrenta dificuldade de acessar o conteúdo do ensino remoto. “Eu comprei um conversor para ele poder conectar na Rede Minas, mas aqui não conecta. Então ele está fazendo as atividades que a gente pega na escola, porque eu estou sem internet”, lamenta.
 
Sem trabalhar por causa da crise econômica, Adriana afirma que as aulas em casa não devem se estender para além da quarentena. “A gente entende que no momento tem que cuidar da saúde, mas, para mim, está sendo muito difícil”, diz.
 
Incertezas
Como se não bastasse a preocupação com dinheiro, rotina e conteúdo, as famílias educadoras ainda têm que lidar com incertezas jurídicas. A Aned disponibiliza em seu site testemunhos de famílias que dizem ter sido denunciadas por terem adotado o método. No Brasil, o homeschooling não é regulamentado nem criminalizado, mas o ECA obriga os pais a matricularem os filhos na escola.
 
“A educação é um direito fundamental previsto expressamente no texto da Constituição, que deve ser interpretado em homenagem ao princípio da dignidade humana. Esse direito pertence à criança, e não aos pais, e inclui não apenas o direito ao acesso ao ensino técnico, mas o de ir à escola”, diz o advogado Fabrício Veiga, professor de direitos fundamentais e autor do livro “Homeschooling no Brasil: Uma Análise da Constitucionalidade e Legalidade do Projeto de Lei 3179/12”.
 
Fabrício pondera que, apesar da obrigatoriedade de os pais matricularem seus filhos, os responsáveis não podem ser legalmente punidos. “A prática do homeschooling não gera crime de abandono intelectual, porque o abandono intelectual exige o ‘animus’, a vontade do pai de privar a criança do conhecimento científico, e no homeschooling ele tem acesso ao conhecimento científico. Ele só não tem direito de ir à escola”, explica.
 
O projeto de lei abordado no livro de Fabrício é de autoria do deputado federal Lincoln Portela (PL-MG). Esta é uma das iniciativas que tentam regulamentar a educação doméstica no Brasil que tramitam na Câmara dos Deputados e visam dar tranquilidade aos homeschoolers. Em nível estadual, um projeto de lei do deputado estadual Léo Portela (PL) no mesmo sentido tramita na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da casa.
 
“A motivação do projeto é a necessidade de regularização de uma modalidade de ensino que já acontece no Brasil. E os pais que são adeptos do homeschooling precisam de uma guarida legal para que não sejam prejudicados pelas autoridades no ato de exercer a modalidade de ensino”, diz Léo. O deputado usa como justificativa para a validade do ensino doméstico o fato de várias figuras bem-sucedidas terem passado por essa experiência. “Vários pensadores da humanidade vieram dele. Um exemplo clássico é o Paulo Freire. Einstein passou pelo homeschooling. É claro que alguns pais querem fazer valer seu direito de educar seus filhos de acordo com seus valores religiosos e morais, garantido pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos”, conclui.