A participação da modelo Raissa Barbosa na 12ª edição do reality “A Fazenda”, da RecordTV, tem sido motivo de debates dentro e fora da casa desde que a equipe que cuida de suas redes sociais emitiu um comunicado informando que a “peoa” tem diagnóstico de síndrome de personalidade limítrofe, ou borderline, um transtorno mental caracterizado por humor, comportamentos e relacionamentos instáveis.
De acordo com relatos de outros participantes da atração que já foram eliminados, após ter sido contida por conta de uma primeira crise diante das câmeras, ela própria comunicou aos colegas – em uma conversa que não foi exibida pela emissora – conviver com o distúrbio psiquiátrico. Naquela ocasião, Raissa havia sido indicada para a Roça por oito participantes e poderia, portanto, ser retirada da casa pela votação popular. À rejeição, ela respondeu de forma agressiva, esmurrando travesseiros e discutindo com integrantes da casa, chegando a atirar a água que estava em uma garrafa em Biel.
Posteriormente, quando a assessoria da modelo divulgou oficialmente que ela havia sido diagnosticada com o transtorno, soube-se que a instabilidade emocional, a sensação de insegurança, a impulsividade e as relações sociais prejudicadas expressadas pelas atitudes dela eram, na verdade, sintomas do borderline. Antes disso, entretanto, a cena já havia repercutido vastamente e chegou a ser tratada em blogs, nas redes sociais e em programas de televisão de forma caricata. “Ela se descabelou”, “berrou” e “perdeu o controle” foram algumas das expressões – um tanto pejorativas – utilizadas para se referir ao que, na verdade, eram manifestações do distúrbio.
Com efeito, desde 16 de setembro, quando o público foi informado do diagnóstico da peoa, o verbete “borderline” passou a ser buscado com frequência inédita no Brasil, conforme dados do Google Trends, ferramenta capaz de medir o interesse dos usuários do Google por algum assunto em um passado recente. Sem falar especificamente sobre a situação vivenciada por Raissa no programa, a médica psiquiatra e psicanalista Marília Brandão Lemos acredita ser importante que mais pessoas procurem conhecer esse transtorno de personalidade que, segundo ela, atinge aproximadamente 6% da população mundial. Só assim, acredita ela, os sintomas não serão lidos apenas como “frescura” ou simples “vontade de aparecer”. Além disso, a partir do conhecimento, supõe que mais pessoas vão compreender que devem, sim, buscar ajuda para lidar com o problema.
A psiquiatra Tatiana Mourão, professora do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, recorre a uma analogia para explicar o distúrbio: “É como se a pessoa ficasse em uma corda bamba, caindo no mundo da neurose (a estrutura de personalidade mais comum e saudável, em que os indivíduos têm a necessidade de seguir as normas e se sentem culpados quando não conseguem fazê-lo) ou da psicose (estrutura em que a percepção da realidade fica prejudicada, afetando a capacidade de julgamento do sujeito)”.
“São pessoas que, em linhas gerais, terão dificuldades com a frustração, pânico em relação ao abandono e vão oscilar entre sentimentos de amor e de ódio em relação ao outro”, explica Tatiana. “A instabilidade demarca as relações interpessoais, afetivas ou profissionais e até a autoimagem desses pacientes”, complementa Marília, que é da diretoria da Associação Mineira de Psiquiatria (AMP). Ela pontua que, por isso, sujeitos com borderline enfrentam dificuldades nas dinâmicas sociais.
Embora tenham pontos comuns, borderline e bipolaridade são transtornos diferentes
Essa volubilidade, contudo, não deve ser confundida com a bipolaridade. “Há fatores e sinais desses dois distúrbios que se sobrepõem, e há pacientes que vão ter os dois diagnósticos, mas são coisas diferentes”, alerta a professora da UFMG Tatiana Mourão, ao que Marília Brandão Lemos complementa detalhando que o transtorno bipolar é caracterizado por fases mais espaçadas: “São pessoas que terão um período em que se comportam de maneira mais equilibrada, outros em que tendem ao comportamento maníaco (em que ficam mais eufóricas, podendo gastar excessivamente e ficar com a sexualidade mais aflorada) ou ao comportamento depressivo (em que se mostram angustiados e ensimesmados). Medicamentos, como estabilizadores de humor, podem ser usados para amenizar esses estímulos em momentos mais críticos”, resume.
Já no caso do borderline, essas variações são mais dinâmicas e não estão delimitadas a um período específico. “O indivíduo pode se frustrar por ter idealizado uma pessoa e, ao se sentir contrariada, ir do amor ao ódio rapidamente”, diferencia Marília. Por isso, o tratamento medicamentoso é ainda mais desafiante.
“Outro traço dessa disfunção é a impulsividade, que é potencialmente autodestrutiva”, acrescenta, sublinhando que essa característica favorece o desenvolvimento de compulsões – seja por compras, sexo ou por entorpecentes, por exemplo – e a adoção de posturas imprudentes – a dificuldade de se conter pode reverberar em brigas no trânsito ou em outras situações de risco que poderiam ser evitadas, inclusive o autoextermínio. Para se ter uma ideia, entre 7% e 10% das pessoas diagnosticadas com a síndrome cometem suicídio, informa a membro da AMP.
Abusos na infância podem estar correlacionados à síndrome, que costuma ser percebida na adolescência
As psiquiatras Marília Brandão Lemos e Tatiana Mourão indicam que, em geral, o transtorno começa a ser percebido na adolescência ou no início da fase adulta. “Ao olhar para a história pregressa, podemos observar sinais mesmo na infância, mas é difícil que o diagnóstico seja feito em crianças”, observa a primeira. Ela também cita que, na maioria das vezes, os sintomas ficam mais brandos à medida que o tempo passa.
Entre os fatores de risco para o desenvolvimento da síndrome há fatores biológicos, psicossociais e ambientais. “Sabemos que parentes de primeiro grau pessoas que têm esse transtorno tem 10% de chances a mais de desenvolvê-lo em comparação à população em geral”, observa Marília. “Abusos na infância – tanto físicos quanto psicológicos ou sexuais – parecem estar mais correlacionados (ao borderline)”, adiciona Tatiana.
Ainda falando do perfil desses pacientes, a docente da UFMG cita que, embora algumas pesquisas indiquem maior incidência em mulheres, é precoce fazer essa afirmação, dado que faltam estudos mais conclusivos que se detenham sobre esse recorte de gênero.
Identificação e tratamento. Identificar o borderline é tarefa que exige tempo. “Não é algo que vai ser feito na primeira sessão de psicoterapia”, adverte Marília Brandão Lemos. Quando autorizadas pelos pacientes, conversas entre o profissional de saúde mental e familiares podem contribuir para um reconhecimento mais rápido do distúrbio.
A psicoterapia é a principal linha de tratamento da síndrome – e será, via de regra, de longo prazo. Além disso, sintomas podem ser minimizados com psicofármacos, que devem ser usados apenas quando prescritos por especialistas, expõe a docente da Faculdade de Medicina Tatiana Mourão. Se houver comorbidades, os quadros de borderline podem ser agravados, e é necessário tratar todos os problemas.
Situações estressoras provocam manifestações mais acentuadas do borderline
Como evidenciou a experiência vivenciada publicamente por Raissa Barbosa em “A Fazenda”, situações estressoras tendem a provocar manifestações mais acentuadas do borderline.
Mais uma vez lembrando que as análises contidas nesta reportagem não se referem especificamente à história da modelo e que apenas partem do exemplo dela para lançar um olhar para a síndrome, Tatiana Mourão observa que, não por acaso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem declarado que, além da pandemia da Covid-19, “vamos e estamos sofrendo com uma epidemia em termos de saúde mental”.
“Nós, seres humanos, das mais diferentes culturas, sempre viveu socializado. Então, houve um afastamento abrupto, que era recomendado naquele momento em que pouco se sabia sobre a doença. Trata-se de algo potencialmente estressor, não só para os diagnosticados com borderline, mas também para eles”, comenta a professora.
Origem do termo. Tatiana Mourão explica que o termo “borderline” (que costuma ser traduzido para o português como fronteiriço ou limítrofe) teve origem na psicanálise e fui cunhado pelo norte-americano Adolph Stern, em 1938. Ela lembra que a expressão foi utilizada para designar pessoas que, por um viés piscanalista, não podiam ter suas personalidades classificadas como neuróticas nem como psicóticas, pois variavam constantemente entre uma estrutura e outra.