Sem data para ser lançado no Brasil, o novo álbum visual da americana Beyoncé, “Black Is King”, vem causando furor desde sua estreia, no dia 31 de julho. Lançada pela plataforma de streaming Disney+, a produção empresta uma narrativa cinematográfica ao álbum “The Lion King: The Gift”, lançado no ano passado, e revisita a trama de “O Rei Leão” a partir de uma perspectiva afrofuturista, construindo uma narrativa em que as pessoas negras são, todas elas, reis e rainhas. No fim de semana, o álbum visual foi logo alçado a um dos um dos assuntos mais populares nas redes sociais – inclusive, no Brasil. É que, tamanha mobilização, nem mesmo o fato de a obra não ter sido disponibilizada no país foi capaz de impedir que por aqui os fãs da artista conseguissem assistir ao filme.
Na segunda-feira, Beyoncé voltou a reinar soberana e pautou extenso debate depois de a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, em uma coluna no jornal “Folha de São Paulo”, tecer críticas à produção, sob o argumento de que a americana teria errado ao “glamourizar negritude com estampa de oncinha”. Tão logo, nas mídias digitais, eclodiram discussões, e trechos considerados problemáticos no ensaio da brasileira foram postos a nu. O ator Ícaro Silva, por exemplo, evidenciou o equívoco que seria reduzir a obra de uma artista negra a uma leitura estritamente antirracista, ignorando toda a dimensão artística de “Black Is King”. Em paralelo, a própria reação do público passou a ser esmiuçada, e, então, surgiram vozes que identificavam nos questionamentos à estudiosa um traço da chamada “cultura do cancelamento” – fenômeno em que uma pessoa é ejetada de uma posição de influência ou fama por ações questionáveis.
Respeito muito o trabalho de Beyoncé. Peço que leiam o texto todo que é muito mais elogioso que crítico. Todo texto pode ter muitas leituras. Me desculpo, porém, diante daqueles que ofendi. Não foi minha intenção. Respeito muito o diálogo e aprendo com ele. Grata.
— Lilia Schwarcz (@LiliaSchwarcz) August 2, 2020
Toda essa história, para além de evidenciar a potência de “Black Is King”, demonstra como as redes sociais operam por meio de mecanismos que estimulam seus usuários a se posicionarem sobre múltiplos assuntos. Pode ser sobre a estreia de um produto de entretenimento, sobre o lançamento de um novo dispositivo eletrônico, sobre os desdobramentos de uma investigação (científica ou policial), sobre uma nova proposição de lei ou sobre a mais recente fofoca do universo dos famosos: bombardeados por informações, somos cobrados a ter também opiniões formadas sobre os mais diversos assuntos, chamados a participar de debates e estimulados a fazer juízo sobre o parecer que o outro deu sobre aquele acontecimento.
Tanta é a pressa em oferecer uma contribuição que certos cuidados fundamentais podem ser negligenciados e comprometidos. Assim, em meio à tempestade informacional e com receio de “perder o bonde”, corremos o risco de endossar narrativas altamente enviesadas ou baseadas em mentiras.
Desejo de fazer parte de uma comunidade mobiliza pessoas a opinarem
Em parte, as dinâmicas que nos impelem a rapidamente tomar lugar em um debate, que, por vezes, ainda mal compreendemos, se relacionam ao desejo de nos sentirmos membro de uma comunidade: “Como somos seres sociáveis e temos certa necessidade de sermos aceitos e participarmos de determinados grupos, muitas vezes somos compelidos a expressar nosso posicionamento online pelo chamado ‘medo de ficar de fora’ (cujo acrônimo em inglês é FoMO)”, avalia Paloma Rocillo, pesquisadora Instituto de Referência em Internet e Sociedade (Iris).
Para ela, esse sentimento é potencializado nas redes sociais em razão do alto fluxo informacional e também pela capacidade de viralização dos conteúdos. “Então, se todos os seus colegas estão fazendo stories, postagens, vídeos e gerando conteúdo sobre determinado assunto e, se você tem desejo de continuar parte daquele grupo, é normal também querer se pronunciar”, completa.
Muito ativo nas redes sociais, contando com dezenas de milhares de seguidores em seus perfis no Instagram e no Youtube, Tiago Almeida concorda. “A internet nos cobra sim, e em tempo real. E, se não tomar parte de algum debate, você acaba sendo taxado de alguém que fica ‘em cima do muro’, e isso não é o bom para quem trabalha com redes sociais”, reconhece o estudante do curso de publicidade. Ele admite já ter imposto a si próprio alguma pressão para “tentar ser construtivo e, às vezes, emitir uma opinião, mesmo não estando completamente preparado”.
Não aconteceu com Almeida, mas é fato que a urgência em adotar um posicionamento pode nos levar a tomar certos atalhos que, depois, vão se revelar caminhos para manifestações impensadas e equivocadas. “Cobrados, buscamos captar a informação instantaneamente, muitas vezes sem verificar muito a fonte daquele conteúdo e sem refletir amplamente sobre aquilo. Podemos, então, abraçar uma ideia enviesada e opinar a partir dela”, pondera o psicólogo doutor em psicologia social Cláudio Paixão Anastácio de Paula. Tudo acontece tão rápido que, muitas vezes, “somos levados a atuar de uma forma intempestiva”, situa.
Apesar da pressão por opiniões instantâneas, é preciso responsabilidade
“E essas nossas manifestação terão desdobramentos: podemos até mesmo estar expondo ideias infundadas, o que pode gerar problemas para a vítima daquilo, no caso de campanhas de difamação, e para nós mesmos, pois podemos expressar uma fala preconceituosa ou dúbia por ter refletido pouco sobre aquilo”, acrescenta o psicólogo, lembrando que é preciso constante vigilância e que todos estão sujeitos a passar por situações de constrangimento em razão da formulação muito precipitada de alguma opinião.
Além do mais, de alguma maneira, diz Paloma Rocillo, todos usuários de redes sociais são potenciais influenciadores: “Quando coletivamente nos manifestamos, também estamos estimulando outras pessoas a se expressarem. Contudo, entre os influenciadores que possuem centenas de milhares de seguidores – e que utilizam as redes sociais como plataforma de lucratividade – e os usuários comuns que utilizam a rede de forma orgânica, existem relações de poder e contextos muito distintos. Isso exige que o grau de responsabilização e exigência também seja distinto”, diz.
Anastácio de Paula concorda com a pesquisadora: para ele, todos são, de certa forma, influenciadores. “Que seja no grupo da família no WhatsApp ou publicamente no Twitter, o certo é que a gente está, em boa parte do tempo de uso dessas mídias, repercutindo algum assunto. E essas repercussões são de extrema responsabilidade, não devem ser feitas levianamente”, avalia.
E se dizeres infelizes passam por escrutínio público, há quem, de pronto, reclame de um suposto cerceamento da liberdade de expressão, apelando para o mencionado conceito de “cultura do cancelamento” ou para a ideia de um “linchamento virtual” – quando o contraponto à fala de alguém extrapola os limites do razoável, evidenciando-se uma perseguição àquela pessoa. Mas nem sempre a pecha é justificável. “Muitas pessoas que reivindicam que estão sendo canceladas, na verdade, apenas estão sendo questionadas sobre aquilo que falaram. Muitas pessoas brancas estão acostumadas a falar coisas e não receber respostas sobre o que falam. Quando a gente consegue trocar de igual, a pessoa se sente cancelada, mas está sendo exposta e responsabilizada pela forma irresponsável como compartilhou o pensamento”, refletiu o rapper Emicida quando, em participação no programa “Roda Viva”, no dia 27 de julho, foi instado a falar sobre o tema.
"Isso não está ligado ao ativismo, está ligado a uma questão geracional".
— Roda Viva (@rodaviva) July 28, 2020
Confira o que disse o cantor @Emicida sobre a chamada 'cultura do cancelamento' na internet. #EmicidaNoRodaViva #RodaViva pic.twitter.com/uTM1bElWrC
Ecossistema pode levar à disseminação de informações falsas
Dinâmica muito presente nas redes sociais, Paloma vê como problemática a recorrência com que pontos de vista são justificados a partir de informações falsas ou altamente enviesadas – “o que colabora para o aumento da infodemia, fenômeno declarado pela Organização Mundial da Saúde como excesso de informações, algumas precisas e outras não, que tornam difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa”, pontua.
Ela acredita que a disseminação desse tipo de conteúdo é algo danoso também para o funcionamento das plataformas sociais em si. “As redes sociais operam na lógica da economia dos dados. Isso significa que quanto mais conteúdo o usuário publica mais o modelo de negócios é bem sucedido, pois a empresa consegue aumentar o volume de dados coletados e consequentemente vendê-los para interessados em direcionamento de conteúdo, principalmente. Nesse sentido, é correto afirmar que as redes sociais estão interessadas em um alto fluxo informacional em suas plataformas”, examina, completando que, por outro lado, isso não significa que essas empresas desejam que desinformação circule em suas redes.
“A existência de desinformação nas plataformas que dependem de alto engajamento do público são prejudiciais na medida que, cientes da falta de qualidade das informações que trafegam naquele ambiente virtual, os usuários migram para outra rede mais confiável e a empresa perde seus valiosos dados”, examina Paloma. “Percebemos esse fenômeno com o boicote ao Facebook feito, recentemente, por usuários e anunciantes em razão das políticas opacas e insuficientes da empresa contra discurso de ódio, o qual não é necessariamente conteúdo desinformativo apesar de frequentemente ser manipulado, descontextualizado ou fabricado”, completa.
Plataformas favorecem a criação de grupos altamente alinhados
Anastácio de Paula acrescenta outros problemas intrínsecos às engrenagens com os quais as redes operam. Um deles é a forma como setores investem em estruturas, como uso de perfis inautênticos, para manipular o debate. Ocorre que, se uma opinião que é, aparentemente, compartilhada por um grande volume de pessoas, outras vão se sentir mais à vontade para reproduzir discurso semelhante. Além disso, essa dinâmica favorece a criação de grupos altamente alinhados, em que o contraditório não é aceito. Esses fenômenos, aliás, se retroalimentam.
“Existe uma demanda de urgência e uma necessidade de a gente se sentir aceito e acolhido em um grupo, então, quanto mais me vinculo a um grupo, mais respeitável eu sou. Dessa maneira, tendo a ficar em silêncio diante de debates em que sou a voz dissonante”, avalia o psicólogo, indicando que, por medo de deixar de ser parte daquele agrupamento, um usuário pode, por exemplo, deixar de questionar conteúdos que ele supõe serem falsos. Ao mesmo tempo, grupos que compartilham de uma mesma visão de mundo tendem a acreditar em publicações que fortalecem suas crenças.
‘Cobrar posicionamento é uma estratégia válida e coerente’, diz estudioso
Neste sentido, ainda que pareça paradoxal – já que ele faz ponderações críticas à urgência com que posicionamentos são cobrados –, Anastácio de Paula vê como positiva manifestações como a do youtuber e empresário Felipe Neto, que instiga outros influenciadores a se posicionarem quando confrontados com situações. Dessa forma, por conta do alcance midiático, se tomados os devidos cuidados, essas pessoas poderiam contribuir para um debate público mais amplo e democrático. O estudante de publicidade Tiago Almeida faz reflexão parecida. Para ele, “pessoas que levantam bandeiras têm, sim, responsabilidade de se manifestarem sobre esses temas quando o assunto estiver em pauta”, argumenta.
Vídeo-carta aberta para todos os artistas e influenciadores do Brasil. pic.twitter.com/5LsuKUWfdw
— Felipe Neto 🇧🇷🏴 (@felipeneto) May 9, 2020
Anastácio de Paula ainda lembra que o silêncio é também uma forma de se posicionar. Entre as celebridades que já precisaram lidar com a repercussão negativa da ausência de posicionamentos está a artista pop Anitta – que, em alguns momentos, pareceu não se comprometer com pautas que fizeram parte de sua carreira. Em março 2018, por exemplo, fãs pediram que ela se manifestasse sobre o trágico assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. A demora para assumir uma postura mais incisiva e a forma como fez isso fizeram dela alvo de críticas. Hoje, é notável que a cantora vem buscando comunicar uma outra conduta à sua audiência.
Entretanto, é tênue a linha que separa o que seria uma cobrança legítima e o que seria uma inoportuna coação. O próprio Felipe Neto precisou, recentemente, voltar atrás quando, primeiro, inquiriu o jogador Neymar Júnior sobre pautas raciais e, depois, apagou a postagem feita no Twitter. O influenciador se justificou dizendo que havia sido questionado por integrantes do movimento negro e que considerou que, de fato, não caberia a ele, que é branco, cobrar do atleta, que é negro, uma atitude sobre o tema.
“É claro que ninguém é obrigado a tomar posição. Cada um vai fazer o seu cálculo, saber até que ponto pode ir”, localiza Anastácio de Paula. No grupo da família, por exemplo, ao receber uma informação falsa, uma “fake news”, existe a possibilidade de não se adotar uma postura de confronto, mas, ao mesmo tempo, é viável que se faça um alerta em um tom mais amistoso sobre aquele conteúdo, pondera o psicólogo. O certo é que, “quanto mais alcance tem nossa voz nos grupos em que participamos, mais somos chamados a nos posicionarmos”, opina.