Atitude

Síndrome de Gabriela: rigidez traz prejuízos para o desenvolvimento

Especialistas defendem que posturas excessivamente inflexíveis podem denotar traumas passados e causar danos às relações


Publicado em 16 de junho de 2021 | 03:00
 
 
 
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“Eu nasci assim, eu cresci assim/ Eu sou mesmo assim/ Vou ser sempre assim”. Aos versos da canção “Modinha para Gabriela”, de Dorival Caymmi, costuma-se recorrer para descrever aquelas pessoas que, ao adotarem uma postura inflexível diante de alguma situação, ainda batem no peito orgulhosas de tal feito. É como se esses sujeitos tentassem convencer os outros – e, talvez, eles próprios – de que tanta rigidez é uma virtude. Contudo, o preço que se paga por assumir um compromisso com a intransigência pode ser alto – sobretudo em contextos de crise e de transição acentuada, quando a adaptação se torna um atributo fundamental para a sobrevivência. 

Embora algumas pessoas possam, de forma mais presente, manifestar a chamada “síndrome de Gabriela”, em referência à música que abre esta reportagem, a psicóloga Isabel Camargos lembra que qualquer um está sujeito a se mostrar pouco maleável em algum momento ou em algum aspecto da própria vida. Quando se torna crônica e orgulhosa, é comum que essa postura, na verdade, seja entendida como um escudo, uma forma de autodefesa. 

“Nesses casos, geralmente há alguma coisa que aconteceu na vida desse indivíduo que ele não compreendeu, que ficou em suspenso. Em reação, para não acessar as emoções contidas neste evento, a pessoa cria uma barreira. Ela acredita que, se continuar fazendo tudo igual, estará se preservando, estará segura”, analisa a profissional, que é filiada à abordagem da Gestalt-terapia, que dá atenção a como colocamos o significado e damos sentido ao nosso mundo e às nossas experiências. 

O psicólogo Erick Paixão acrescenta que, algumas vezes, embora tenha consciência de que seu comportamento é inadequado e prejudicial, o sujeito que está adotando uma postura inflexível vai insistir em agir daquela maneira porque, no fundo, o temor de mudanças o paralisa. “É muito comum que a gente escute frases como: ‘Goste de mim ou não, eu sou assim’. E é também comum que se recorra a essas frases quando há uma reação negativa ao que foi feito”, lembra, situando que esses episódios funcionam quase como um pedido de desculpas às avessas. “A pessoa se justificava, mas, ao sustentar que sua natureza seria imutável, demonstra que não tem a pretensão de evitar aquele erro no futuro. Essa é, também, uma tentativa de se desresponsabilizar”, sublinha. 

“Esse recurso costuma ser mais utilizado por aqueles que, por exemplo, viveram situações em sua infância em que assumir o erro era visto como algo vergonhoso, que sofreram muitas punições quando tentavam fazer algo de diferente ou que foram criadas dentro de um sistema muito rígido”, analisa Paixão. 

Efeitos 

Nas mais diversas dimensões da vida, a crença de que a inflexibilidade é um atributo causa danos. “Tenho pacientes que criaram convicções sobre a sexualidade, que acreditam que o homem deve sempre estar pronto para o sexo e que a ereção é sinal de virilidade. Eles acreditam que ser homem é ser dessa forma, mas começam a ter problemas por isso. Algo que pode acarretar, inclusive, em disfunções sexuais”, expõe Erick Paixão, que é terapeuta sexual.  

“Além disso, se esse sujeito se apega a valores pessoais e se mostra intransigente com uma realidade que destoa, ele pode sofrer. Por exemplo, se ele tem resistência à diversidade, é provável que se desgaste cada vez mais ao encarar um mundo mais aberto, em que as múltiplas manifestações de afeto e de identidade são cada vez mais corriqueiras”, observa. 

“No campo profissional, é hoje desejável que a pessoa consiga se adaptar a novas rotinas. Se ela tem um bloqueio nesse sentido, pode ficar para trás”, comenta o psicólogo.  

Isabel Camargos recorre a um exemplo muito presente no momento atual para expor como a chamada síndrome de Gabriela pode ser prejudicial: “O dono de um restaurante que se recusava a fazer entregas e a usar plataformas digitais certamente teve muito mais dificuldade em fazer seu negócio sobreviver, se comparado a outro que logo buscou se adaptar à nova realidade”, opina. 

Para pensar sobre os efeitos da inflexibilidade, Isabel propõe uma reflexão baseada na abordagem da Gestalt. “Acreditamos que, quando nos abrimos para o mundo e assimilamos as diferenças, nós crescemos, e isso gera em nós uma energia de vida. Se falamos do contrário disso, estamos falando em uma falta de crescimento e no extremo disso, que é a morte”, resume. 

Fantasia

Tanto Erick Paixão quanto Isabel Camargos concordam que a síndrome de Gabriela se baseia em um mito que não encontra respaldo na realidade. “Mesmo que a pessoa não perceba, ela está se fiando a uma fantasia, porque ninguém nasce e morre igual”, diz ele, citando que diversos estudiosos do comportamento humano já apontaram que somos seres inacabados e em constante construção. “Somos sempre um vir a ser”, complementa.

Pensando nisso, Isabel recomenda cuidado com os rótulos. “Quando a gente se coloca em uma caixinha e nota que outras pessoas também se identificam assim, podemos nos sentir mais seguros. É uma sensação genuinamente boa de se reconhecer. Porém, esse sentimento pode extrapolar para a fixação, de forma que eu não me abra para outras descobertas, como se, na vida, nossos interesses não fossem se transformando ao longo do tempo”, sinaliza.

Para ilustrar essas mudanças que ocorrem ao longo da vida, a psicóloga recorre ao paladar. “Muita coisa de que já gostamos muito, hoje não nos agrada tanto assim. Outras, que evitávamos, passamos a gostar. Tem quem diga: ‘Amo chuchu e não mudo’. Tudo bem. Mas quem sabe, no futuro, você goste também de quiabo?”, diz.

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