De dona Rita, 71, que fez sua primeira peça de barro aos 12 anos, à sua bisneta Ana Laura, 7, que está começando agora, não foram só os anos que se passaram. “Quando eu comecei, nós mesmos pegávamos o barro da terra. Hoje, temos que comprar, porque aqui acabou. E muita coisa evoluiu nesse tempo. A pintura, por exemplo, tem mais técnicas de acabamento. Sem falar da forma de vender e divulgar. Antigamente, a gente vendia só para o pessoal da região. Hoje, o povo todo conhece a marca do Vale do Jequitinhonha”, conta Rita Gomes Lopes.
De acordo com o analista de negócios da cadeia do artesanato do Sebrae Minas, Julian Rodrigues, a tradição precisa ser constantemente acompanhada da inovação. “O nosso desafio é convencer as gerações anteriores a conhecer novas formas de artesanato, lembrando que a inovação é necessária, mas é fundamental que ela esteja alinhada com as origens e identidades. Não adianta, por exemplo, criar uma peça com um animal que não existe aqui, na região. Precisa ter um elo com a realidade local”, afirma Rodrigues.
As bonecas, os filtros, as moringas, as panelas e várias outras peças utilitárias ou de decoração reproduzem cenas do cotidiano da região. As características são tão marcantes que, em 2021, o Conselho das Artesãs, em parceria com o Sebrae Minas, criou a marca-território Vale do Jequitinhonha. “É muito importante a gente trabalhar a promoção e o reforço da história por trás de cada peça, por trás do artista. O conjunto da obra tem mais peso do que a obra em si”, explica o analista.
Hoje, o Sebrae Minas acompanha cerca de 120 artesãs, que se organizam em associações, e o foco é fortalecer esses grupos em torno de objetivos comuns. “Temos feito ações de mercado voltadas para negociação, digitalização, busca de parceiros, marketing, melhor forma de participar de feiras e de se expressar, sem necessariamente seguir tendências industriais”, destaca Rodrigues.
Essa é uma preocupação da artesã Anísia Lima Souza, 53, filha de dona Rita. “Tem muita coisa boa na digitalização, na divulgação pelas redes sociais. Mas, ao mesmo tempo, eu sinto que gera mais cópias. Antes, quando a gente chegava numa feira, só a gente tinha determinado produto. Agora, muita gente copia”, pondera a artesã.
Por isso, a criação da marca-território tem a intenção de fortalecer ainda mais as origens locais. Para impulsionar o trabalho das artesãs, o Sebrae promove ações de desenvolvimento, por meio de programas voltados para capacitação em design, gestão, finanças, marketing e acesso ao mercado.
“Todo ano, também organizamos uma ação para trazer lojistas de todas as regiões do Brasil para conhecer todo o processo, desde pegar o barro, passando pela modelagem até a pintura das peças. E eles também conhecem a cultura e os saberes da região, o que gera uma enorme conexão e se reflete nas vendas”, pontua o analista Julian Rodrigues.
Propósito e inovação
Na avaliação da consultora de gestão familiar Vivian Silva, da Safras & Cifras, não se trata de opor a tradição à inovação. “É preciso aliar as duas coisas. E é importante investir no processo de profissionalização, para preservar os valores da família. Porque, diferentemente das demais empresas, nos negócios familiares, não se trata apenas de um produto; normalmente existe um propósito”, destaca.
Segundo a consultora, nesse perfil de negócio, o mais motivador é o desejo da continuidade do legado. “Temos um propósito bem-definido, que vai nos guiar sobre por que fazemos, como fazemos e o que fazemos. Isso quer dizer que, independentemente do que produzimos, sempre haverá a essência da continuidade do sonho inicial”, ressalta Vivian.
O que é patrimônio material?
- Em 2006, o Brasil aderiu à Convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) que classifica como um patrimônio imaterial “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas (...) que comunidades, grupos e, em alguns casos, indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”.
- Dentro da noção dos bens culturais de natureza imaterial, estão as práticas e os domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer.
- “O patrimônio imaterial é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história”, assinala texto do Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan).