O jornalista e escritor Marco Lacerda é um letrado. Escreve e devora livros. O tira-gosto é a vida, repleta de ótimas histórias e personagens perfeitos. Daí seus livros serem altamente cinematográficos. Inteligente, ousado, culto e ferino “comme il faut”, Marco não cabe nesta meia página. Tim-tim!


Marco, você foi o criador e primeiro editor deste MAGAZINE. Qual o teu legado e como vê o “filho” hoje?

No momento em que o MAGAZINE pôs os pés nas ruas houve um reconhecimento instantâneo vindo de todas as partes do Brasil, inclusive de pesos-pesados intelectuais. Não se falava de outra coisa na imprensa brasileira. Os cadernos de lazer e cultura hoje – como de resto todo o jornalismo – estão a um passo da pornografia, a dois do kitsch e a léguas da inteligência. O MAGAZINE nada fica a dever aos melhores cadernos de cultura do País.


Quantos livros publicados?

São três: “Favela High-Tech”, “Clube dos Homens Bonitos” e “As Flores do Jardim da nossa Casa”, dois dos quais best-sellers e um deles na lista dos dez finalistas ao Prêmio Jabuti. Nunca ganhei prêmios nem fui convidado para feiras literárias. Mas um deles, “Favela High-Tech”, me encheu o bolso de grana, permitindo que eu passasse dois anos em San Francisco sem lavar pratos, apenas escrevendo o livro seguinte, além de comprar meu primeiro apartamento, um flat bacanudo nos Jardins paulistanos.


Por falar em “Favela High-Tech”, como anda a adaptação para o cinema?

Um mistério insondável que só os irmãos Gullane, da Gullane Filmes, de São Paulo, poderiam explicar. Como é possível uma produtora pagar caro pelos direitos autorais de um livro, renovar o contrato mediante outra quantia polpuda e até hoje não ter iniciado as filmagens? Tudo o que sei é que o projeto é uma megaprodução internacional. O roteirista é francês, estão sondando James Franco para o papel principal e caçando uma descendente de japoneses, brasileira, para protagonista.


A boa literatura nasce das tripas ou do coração?

Os problemas do mundo não se esgotam na literatura. Não escrevo para fugir da morte, como tantos escritores. Isto é uma ilusão, ninguém foge da morte. O máximo que poderia dizer é que se escreve porque não se quer morrer. Quanto à boa literatura, no meu caso pelo menos, no momento ela depende mais do novo acordo ortográfico. Ainda não entendi porque “três” continua de chapeuzinho – o que não é pouca coisa num país que, mesmo sabendo que existe uma língua pátria, se recusa a aprendê-la.


Você já passou por grandes veículos. Qual a memória que não quer calar? Qual a grande lembrança, a grande reportagem, o grande texto de sua vida?

Pra mim, as grandes reportagens nunca estiveram em jornais, mas em livros: “Relato de um Náufrago” (Gabriel García Márquez), “A Sangue Frio” (Truman Capote), “Os Últimos Soldados da Guerra Fria” (Fernando Morais), “O Sonho do Celta” (Mario Vargas Llosa. Uma reportagem que eu fiz e da qual me lembro com carinho foi sobre a inauguração da usina de Três Marias. Ao chegar ao lugar, encontrei, perdida na imensidão da área a ser inundada com a abertura das comportas, uma jovem de uns 20 anos, sozinha em sua casa de pau a pique, esperando o noivo que partira para as cidades vizinhas em busca de um emprego para poder casar-se com ela. A dois dias da inauguração da represa, o rapaz ainda não tinha voltado e a garota prometeu, assim mesmo, não arredar o pé do lugar até a volta do seu amado. Nunca se soube que fim levou. A entrevista foi comprada por uma revista holandesa e eu ganhei o primeiro cachê em dólares da minha vida.


E tua experiência no Rádio, com o Frente e Verso?

O rádio é o veículo do qual mais gosto, um fenômeno eterno. O FrenteVerso foi um sucesso nacional retumbante como programa de entrevistas. Infelizmente, foi abortado pela negligência de um governo alérgico a cultura. A saída do programa do ar, por motivos pífios, causou repúdio igualmente nacional.


Como vê o jornalismo, hoje, no Brasil?

Jornalistas tornaram-se dinossauros. Vai chegar o dia, em breve, em que, da mesma forma como aconteceu com os dinossauros autênticos, os estudiosos sairão à procura dos ossos dos dinossauros da imprensa para reconstituí-los tal como eles teriam sido para que se entenda o que acontecia no mundo.


Televisão, nem pensar?

Pensar eu penso. Penso em como a televisão tornou-se um esgoto no qual se atiram os detritos mais repugnantes produzidos pelo homem e do qual emerge o que existe de mais podre numa cultura, inclusive na brasileira. Mas não vejo televisão. A melhor novidade da TV brasileira está na internet: “Porta dos Fundos”.


Conte-nos sobre a Domtotal e seus colaboradores.

O Domtotal, revista eletrônica da qual sou editor-especial, é uma publicação independente e sem fins lucrativos. É vinculada à Escola Superior Dom Helder Câmara, especializada em Direito. A rapidez com que crescem o número de leitores e de acessos e sua repercussão nacional são mais uma prova da opção preferencial vigente pela imprensa virtual. Estas são também as razões que me levaram a abandonar a chamada “grande imprensa” (sic). Nosso time de colaboradores inclui Carlos Brickmann, Max Velati, Marli Gonçalves, Ricardo Soares, Reinaldo Lobo, Lev Chaim (de Amsterdã), Carlos Eduardo Leão, Luiz Sérgio Toledo (de Dubai), entre muitos outros.


E tua paixão nada secreta por Madrid?

Minha decisão de ir a Madrid pela primeira vez ocorreu num coquetel, depois do terceiro – e sempre perigoso – dry martini. Aos cinco minutos na cidade me senti mais madrilenho que os reis da Espanha. Como não se apaixonar por uma cidade edificada sobre a água e com muros de fogo, onde amplas avenidas arborizadas têm fontes que jorram néctar e chove ambrosia. Alguém, estando em Madrid, deteve-se por um momento para contemplar as cores que resplandecem na cidade quando, ao sair do metrô, numa tarde de outono, o sol desaparece?


E a escolha do Barcelona como seu time do coração?

Pode parecer estranha, de fato, porque Barcelona fica a 500 km de Madrid. É uma cidade fascinante, aonde o frio chega, mas logo se cansa e parte para outros lugares. A grande atração da cidade, além das obras de Gaudí, é o Barça. Quem já viu ao vivo um Barcelona x Real Madrid sabe do que estou falando. Se é o Real Madrid que vence há, no máximo, um frisson no Santiago Bernabéu. Se é o Barcelona, soam trombetas, a torcida entra em êxtase e orgasmos múltiplos no Camp Nou. Que jogador brasileiro brilhou tanto no Real Madrid como tantos brilharam no Barça? Romário, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo – pra citar alguns – viveram o momento de glória de suas carreiras como culés, jamais como merengues. Vi Ronaldinho Gaúcho incendiar o Camp Nou com seus dribles e passes sensacionais, inclusive o jogo em que ele deu o passe cirúrgico para Messi marcar o primeiro gol de sua carreira.


Na Copa do Mundo. Arrisca um palpite? Espanha, Argentina ou Brasil?

Pra ser sincero, tanto faz. Em 2012, quando se anunciou que o mundo ia acabar, a tragédia foi cancelada no Brasil, pois o país não tem estrutura para um evento desse porte. Mas somos um país com vocação para o absurdo. Claro que o Brasil não podia gastar a fábula que está gastando para sediar a copa. O que fazer com os estádios que ficarão ociosos depois do Mundial? Com certeza permanecerão aí como tributos à insanidade a serem lembrados pelas gerações futuras.


O Brasil de 2014 é de fazer Deus perder a fé ou tem jeito com as eleições em outubro?

Seria surpreendente, no momento atual, que alguém se atrevesse a ser um otimista. Quem, diante do espetáculo de escárnio oferecido pela política e grande parte dos governantes brasileiros, insiste em ser otimista é alguém que não percebe o que se passa ou faz de conta que não entende. Sinto-me como o escrivão Pero Vaz de Caminha tendo que mandar aquela carta à corte portuguesa, quinhentos anos depois. “Cheira mal, fede, parece um país em decomposição”, seria a minha abertura. Quando leio ou vejo o noticiário brasileiro nunca sei se estou na guerra ou num bordel.