Desde o registro da primeira morte por Covid-19 no mundo, na China, em 11 de janeiro de 2020, já se vão 731 dias vividos entre isolamento social, máscaras, campanha de vacinação e, só no Brasil, 620 mil mortes pela doença. Além da tensão e do trauma da vida em uma pandemia, a crise sanitária promete deixar mudanças permanentes na rotina, como aumento das compras pela internet, “tinderização” de relacionamentos e a valorização do ambiente doméstico. 

Longe de serem banais, na perspectiva de pesquisadores, essas mudanças se somam e criam um mundo diferente do que se vivia antes da pandemia, que não tem volta. “As mudanças pequenininhas no cotidiano são muito profundas, porque afetam cada um de nós, por isso o conjunto delas têm um efeito tão grande. Uma pandemia produz uma ruptura, uma mudança profunda na sociedade e na vida das pessoas, mesmo que ainda não possamos ter a exata dimensão e a reflexão sobre o que está acontecendo agora. Este não é um momento em suspenso, em que vamos voltar para onde paramos antes da pandemia. Como diz a música do Chico Buarque, ninguém volta ao que acabou”, diz a historiadora Heloísa Starling, pesquisadora da epidemia de gripe espanhola que varreu o Brasil há cem anos.

A pandemia, sobretudo, escancarou os abismos sociais nas esferas socioeconômicas e educacionais. Professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG, Cláudio Paixão explica que houve uma transposição dos serviços para o mundo virtual de forma intensa, dividindo a sociedade entre os que têm acesso à tecnologia e um pacote de dados e quem está à margem. Essa divisão marcou a educação, as relações de trabalho, o cuidado com a saúde e o acesso à cultura. 

“Houve um apartheid intelectual, determinado pelo acesso à internet”, diz o especialista, para quem é fundamental investir no acesso ao serviço para reduzir o abismo social amplificado pela pandemia. “Tive alunos que não terminaram o semestre porque não tinham acesso à internet. A universidade fez um esforço muito grande para que todos tivessem equipamentos e pacote de dados, mas alguns alunos vivem em comunidades onde a internet de qualidade não chega”.

E num mundo ainda mais conectado, Paixão alerta para a superficialização das relações. Para ele, houve uma maior “tinderização” das relações, sejam elas românticas ou de amizade. “Se você está conversando com alguém pela internet e essa pessoa fala algo que não te agrada, você interrompe a conversa e fica difícil haver um aprofundamento. Se fosse um encontro presencial, vocês dariam um jeito de resolver aquela situação, ela teria que ser enfrentada”.

A psicóloga Cristiane Nogueira, que atua como coordenadora municipal de Saúde Mental de Itaúna, afirma que a pandemia nos apresentou um paradoxo. Se por um lado as pessoas sofreram muito com o distanciamento de seus pares (sejam amigos, familiares, colegas de trabalho ou escola), elas também tiveram de lidar com o convívio intenso dentro de casa. Isso acabou se refletindo em conflitos nas relações. “Muita gente ficou sem ir ao trabalho e à escola, sem convivência com seus pares, e esse distanciamento tem um impacto muito negativo, podemos perceber um aparecimento de sintomas de sofrimento emocional em todas as faixas etárias”, diz a psicóloga, que defende a manutenção das relações presenciais, mantendo os cuidados sanitários, como o uso de máscaras.


Ciência se torna protagonista

Professoras da Universidade de São Paulo (USP) chegaram a compilar um glossário de termos que entraram no dia a dia do Brasil, como “boletim epidemiológico” e “cepa”. O doutorando em Medicina na Universidade de Vermont, nos EUA, e membro do Observatório Covid-19 BR Vitor Mori comemora o interessa da população pelos temas, porém é cético sobre o impacto deles no longo prazo.

“Não sei as pessoas estão de fato interessadas em ciência ou apenas buscando informações sobre como se proteger, porque não existe quem não tenha sido afetado pela pandemia. Seria um ótimo legado se isso se refletisse na cobrança da sociedade para que governos invistam em ciência, porque ficou clara a importância da ciência de alto nível”, diz. Ele próprio ganhou evidência nas redes sociais ao dar orientações de diminuição de riscos, com foco na ventilação de ambientes e uso de máscaras do tipo PFF2. 

Antes da pandemia, era raro ver pessoas utilizando máscara no transporte público, por exemplo, ou trabalhando de casa durante uma gripe. Após a crise sanitária, cientistas esperam que a cena se torne menos incomum, ainda que não tenham esperança de que toda a população brasileira vá aderir à mudança.


Fome a olhos vistos

Na porta de supermercados e nos sinais de trânsito, a fome ganhou cara durante a pandemia, com o aumento de pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil e no mundo, dependendo de auxílios do governo e doações para sobreviver. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que 118 milhões de pessoas começaram a passar fome no mundo. No Brasil, mais da metade da população está em algum nível de insegurança alimentar. 

Além da necessidade do auxílio emergencial, demandado por 60% da população do país, oito a cada dez moradores de favelas dependem de doação para comer na pandemia, segundo pesquisa do Datafavela. Para a presidente da Agência de Iniciativas Cidadãs (AIC), que mantém o projeto de doações Comunidade Viva Sem Fome, Rafaela Lima, o cenário cotidiano da insegurança alimentar se arrastará após a pandemia. 

“Tivemos um boom de solidariedade no começo da pandemia, mas a quantidade de doações caiu. O Brasil voltou para o mapa da fome, e vemos isso nas portas do supermercado, da padaria. Os efeitos são de longo prazo e ainda vamos conviver com esse aumento da pobreza”, diz. 

E-commerce fortalecido

Enquanto as lojas do comércio de rua fechavam as portas - em muitos casos, definitivamente -, o comércio virtual forneceu na pandemia. De vestuário a compras de supermercado, o consumidor se acostumou a comprar online e a tendência, que já vinha forte antes da pandemia, deve continuar avalia o professor de e-commerce da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) Alexandre Marquesi.

“Vivemos um momento em que os mais velhos tiveram por obrigação que passar a comprar pela internet. Vimos isso com as compras de supermercado, por exemplo. Após a pandemia, as compras físicas não vão desaparecer, mas teremos mais opções”. 

Inflação em disparada e economia frágil

A inflação atingiu dois dígitos no Brasil e, no mundo inteiro, a pandemia pressionou os preços para cima devido ao desequilíbrio de oferta e demanda por produtos desde microchips para computadores e carros a alimentos.

O cenário político e econômico particular ao Brasil também explica o aumento de preços no país, mas a pandemia impulsionou os efeitos das altas, que não tendem a dar descanso no futuro próximo, destaca o o coordenador do curso de ciências econômicas do Ibmec, Marcio Salvato. 

“Um fato como a pandemia é entendido como um choque para a economia. A inflação não acaba quando a pandemia acaba.  O perfil do consumidor também mudou e deixará marcas”, avalia.