Proclamação

República ainda é um sonho, 130 anos depois

Em 1889 mudou regime, mas bem coletivo nunca foi prioridade, diz analista; historiadores afirmam que a desigualdade e o patrimonialismo roubam a essência desse modelo

Sex, 15/11/19 - 06h00
Quadro de Benedito Calixto produzido em 1893 ilustra a Proclamação da República em 1889 | Foto: Reprodução Benedito Calixto

Entre o final de 2009 e 2010, quando a Prefeitura de Belo Horizonte proibiu eventos na praça da Estação, no centro da cidade, algumas pessoas desafiaram o decreto e se reuniram vestidas de roupas de banho sob os chafarizes do espaço. Assim nascia a Praia da Estação, movimento que contribuiu para anular a decisão municipal e que, para a historiadora e cientista política Heloísa Starling, representa o espírito republicano.

“As pessoas saíram do mundinho privado delas, foram à praça e criaram uma situação de debate público sobre qual função aquele lugar deveria ter, no sentido de que a praça deveria continuar acessível a todas as pessoas”, explica. 

Quando o marechal Deodoro da Fonseca liderou a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, há exatos 130 anos, no Rio de Janeiro, certamente não era esse tipo de situação que ele tinha em mente. Mas historiadores concordam que a República é mais do que um modelo de governo substituto da monarquia. É um conjunto de valores da vida em sociedade, como igualdade e liberdade – e, enquanto brasileiros, ainda estaríamos longe de alcançá-los.

O historiador José Murilo de Carvalho é enfático: “Valores republicanos nunca existiram entre nós. Temos um sistema republicano de governo, não uma República. Não existe República, isto é, a valorização do bem coletivo, quando ainda predominam práticas patrimonialistas, nepotistas, clientelistas, corporativistas, falta de espírito público, desigualdade perante a lei”.

Na visão de pesquisadores da história nacional, o caminho para fortalecer o que Heloísa Starling chama de “esboço de República” é longo, mas desejável e possível. E alguns fatores explicam o trajeto até aqui. 

Golpe de 1889

Tem se tornado um consenso entre pesquisadores que a Proclamação foi um golpe, articulado especialmente por militares. Afinal, a República surgiu não de uma revolução popular ou de uma proposta de reforma governamental, mas do desembainhar da espada para tomar o poder à força.

Ainda assim, o historiador Jorge Ferreira pondera: “O grande problema é pensar 1889 como golpe, colocando-o na mesma categoria e dimensão do golpe do Estado Novo, em 1937, ou o golpe de 1964 (que iniciou a ditadura militar). O que houve em novembro de 1889 foi um rompimento com as instituições vigentes e implantação de um novo regime”.

A Constituição de 1891, a primeira do novo regime, foi inédita ao declarar que todos eram iguais perante a lei. Na prática, a desigualdade persistiu. Basta lembrar que a Abolição da Escravatura havia ocorrido apenas três anos antes, sem ter resolvido as questões de racismo e outros problemas sociais, que continuam até hoje. 

Starling pontua que passar indiferente por uma pessoa em situação de rua, por exemplo, é sinal de que a noção republicana de igualdade não penetrou no dia a dia do brasileiro. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, existem mais de 16 mil famílias vivendo nas ruas mineiras, mais da metade em Belo Horizonte. “Dizer que todos são iguais não é o ponto de chegada, mas de partida, para que a sociedade se organize e lute por isso”, resume Jorge. 

O historiador é um dos organizadores da coleção “O Brasil Republicano”, em que mais de 60 pesquisadores analisam a história da República no país. O último volume, lançado em 2018, revisa o período de 1985 a 2016, marcado pela retomada da democracia após os 21 anos de ditadura militar. Ele teria sido interrompido pelo impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), que Ferreira entende como uma ruptura institucional, encerrando o jogo de poder de posição e oposição entre PT e PSDB, que durou quase três décadas. O que vem adiante, ele não arrisca dizer.

Heloísa Starling pensa na República instituída em 1889 como uma casca oca, sem valores, mas ressalta que é possível mudá-la com as próprias mãos. Ela lista inspirações para o futuro: a Praia da Estação, o Duelo de MCs (que reúne rappers sob o viaduto Santa Tereza) e, voltando mais no tempo, a Revolução Pernambucana de 1817 – movimento nordestino que se rebelou contra a Coroa e tentou estabelecer a República em Pernambuco.

Jorge Ferreira lembra a importância dos primeiros passos ao revelar seu programa para este feriado: ele planeja passar o 15 de novembro com o neto em alguma praça, ensinando ao pequeno que não se deve jogar lixo na rua, pois um republicano cuida do bem público, que é de todos.

“O oposto da República não é a monarquia, mas a tirania em qualquer forma.”

Heloísa Starling, historiadora, cientista política e professora da Universidade Federal de Minas Gerais

“Não há o que celebrar, há tudo a recear. A data é uma oportunidade para olhar para a frente e tentar avaliar o que nos espera nas próximas décadas.” 

José Murilo de Carvalho, historiador e cientista político

 

 

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