Servidão que persiste e atravessa séculos. A identidade do trabalho escravo no Brasil continua, em sua maioria, masculina, de cor preta ou parda e sem acesso à educação. O balanço do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) revelou que das 2.575 pessoas resgatadas em situação análoga à escravidão em 2022, 92% eram homens e 83% desses trabalhadores se autodeclaram como pretos ou pardos. O estudo também apontou que 23% dessas pessoas não completaram o 5º ano do ensino fundamental.

"São pessoas pobres e que se encontram em situação de vulnerabilidade. A pobreza é basicamente o que leva as pessoas a se tornarem vítimas desse crime. Uma consequência da falta de acesso à terra e até mesmo a um emprego onde o empregador garanta uma boa condição de trabalho",analisa Marcelo Campos, auditor fiscal do trabalho, junto ao Ministério do Trabalho e Emprego.

O estudo mostrou ainda que 15% dos trabalhadores resgatados no país se autodeclaram brancos e 2% são indígenas. A maior parte deles são homens e com idade entre 30 e 39 anos, o que representa 29%. Quanto à escolaridade, além dos 23% que declararam não ter completado o 5º ano do ensino fundamental, 20% disseram ter cursado do 6º ao 9º ano incompletos e 7% eram analfabetos.

"Cada caso tem suas peculiaridades, mas, em comum, o que a gente percebe é que essa população vulnerável, sem acesso à moradia ou a um emprego que contemple os seus direitos, está muito mais exposta aos riscos de se tornar vítima desse crime", avalia  Lívia Miraglia, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Comissão de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG). 

O balanço do MTE também indicou que, do total de trabalhadores resgatados, 148 eram migrantes de outros países, sendo 101 paraguaios, 14 venezuelanos, 25 bolivianos, 4 haitianos e 4 argentinos.

Vítimas estão mais expostas em períodos de crise econômica

Um estudo feito pelo Ministério do Trabalho e Emprego junto ao Ministério da Justiça reforçou a tese de que os períodos de crise econômica aumentam a exposição dessas pessoas aos riscos do crime de trabalho escravo. 

"Tal recessão econômica impactará diretamente na vida de inúmeras pessoas, sendo mais grave, principalmente, para aquelas que já se encontravam em situação de maior precariedade. Consequentemente, haverá um incremento na vulnerabilidade socioeconômica das pessoas e possível aumento de casos de tráfico de pessoas", aponta a pesquisa, que considerou a recessão econômica provocada pela pandemia da Covid-19.

O relatório apontou também que medidas sanitárias que foram adotadas durante o período de crise sanitária, como o "regime de fechamento de fronteiras", favorecem a ação de contrabandistas de estrangeiros, expondo migrantes e refugiados a maiores condições de abusos, de exploração e de tráfico.  O estudo mostrou que, no Brasil, o número de vítimas resgatadas de situações de trabalho forçado durante a pandemia permaneceu na média dos últimos quatro anos. A pesquisa sugere, então, que a pandemia não arrefeceu o tráfico de pessoas para exploração laboral.

No entanto, o relatório constatou que o efeito econômico da pandemia agravou as formas de exploração do trabalho. "Com a diminuição da demanda por produtos, aumento dos preços dos alimentos e ameaças de despejos, alguns trabalhadores passaram a ‘aceitar’ mais trabalho, ainda que por menor pagamento", explica.  O período de emergência sanitária restringiu o contato com o mundo exterior, o que favoreceu casos de exploração sexual e servidão doméstica, que são formas de tráfico que afetam mais mulheres e meninas. "É possível acreditar no agravamento de suas condições a partir do indicador de aumento de níveis de violência doméstica relatados em muitos países", descreve o relatório.

Trabalho análogo a escravidão e tráfico de pessoas

Para a presidente da Comissão de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da OAB-MG e professora da UFMG, Lívia Miraglia, a subnotificação é o principal desafio para as autoridades públicas. Miraglia, que coordena ações e pesquisas sobre o tema, indica que a dificuldade da vítima ou de pessoas próximas dela em reconhecer que uma situação de tráfico de pessoas ou de trabalho análogo à escravidão é o fator mais relevante para a subnotificação. "A lei de tráfico de pessoas, por exemplo, é de 2016, é algo muito recente. Então é difícil não só para a pessoa, como também para as autoridades, classificar um caso de exploração, de servidão doméstica", justifica. 

O crime de tráfico de pessoas está tipificado no artigo 149-A do Código Penal Brasileiro. A prática, conforme definição, se dá pelo “agenciamento, aliciamento, recrutamento, transporte, transferência, compra, alojamento ou acolhimento à pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso de pessoas que venham a ser submetidas a algum tipo de exploração”. O delito pode ocorrer de forma intermunicipal (entre cidades), interestadual (entre estados) e também de forma internacional (entre países). A pena deste crime é de 4 a 8 anos de reclusão e multa, podendo ela ser aumentada conforme as condições de submissão da vítima, a idade dos envolvidos e também ao local em que é praticado.

O auditor fiscal do trabalho Marcelo Campos, que atua junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, também aponta a ausência de estudos e de números como um dos desafios para as autoridades no desenvolvimento de ações para o enfrentamento a esse tipo de delito e na criação de políticas públicas. Campos acredita que essa ausência de dados ocorre, em sua maioria, por causa da falta de conhecimento das vítimas, o que faz com que elas não percebam que são alvos dessa violência, além do desejo por melhores condições de vida.

"Isso é algo que movimenta centenas de milhões de dólares em todo o mundo. No Brasil ainda não se tem um estudo sobre quanto isso movimenta financeiramente. Mas desde 1995, nós já libertamos mais de 60 mil trabalhadores nessas condições. Imagina, então, toda essa quantidade de pessoas com seus direitos suprimidos. Alguém retirando não apenas a dignidade, mas o dinheiro desses trabalhadores e usufruindo deles", relata o auditor fiscal, que diz acreditar no poderio econômico destes criminosos como forma de intimidação às vítimas.