“Já perdi um emprego em uma multinacional onde a chefe dizia que ‘odiava crente”. “Existe agressão, existe perseguição. Já tive muitas crises de ansiedade. Cheguei a pensar em desistir”. As frases, respectivamente ditas pelo bispo evangélico Carlos Damasceno e pelo pai de santo Bruno Vieira, chamam a atenção para o fato de que, embora de religiões diferentes, ambos já foram vítimas de preconceito inúmeras vezes. Em Minas Gerais, somente em 2022, de janeiro a novembro, foram registradas 83 ocorrências tendo o preconceito religioso como causa. Assim como os dois líderes, outros entrevistados relatam casos de opressão, xingamentos e violência vivenciados por eles em função da fé.
O assunto sobre intolerância religiosa tomou as redes sociais nos últimos dias, após um episódio no Big Brother Brasil (BBB). Os participantes Key Alves, Cristian Vanelli e Gustavo Benedeti foram acusados de serem intolerantes com Fred Nicácio. O trio declarou “medo” devido à religião do médico.
Segundo os brothers e sister, Nicácio “estava parado fazendo os negócios dele” durante a noite, o que não os agradou. “Vocês acordaram com o Fred? Vocês não viram? Eu acordei e ele estava parado em frente à cama de vocês”, disse Cristian, que já foi eliminado da casa, assim como Gustavo. Tadeu Schmidt precisou intervir na edição e deu espaço para Fred Nicácio falar da sua crença em uma religião de matriz africana.
Os relatos de intolerância jogam luz para a importância do respeito, independentemente das práticas e crenças de cada pessoa. A sanção de uma lei pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nos primeiros dias de governo tornou mais severas as penas para crimes de intolerância religiosa.
O preconceito, segundo relatado por líderes religiosos, é expresso de várias formas. No caso do bispo evangélico Carlos Damasceno, além das vivências na vida pessoal, ele conta que já houve pessoas que entraram na igreja durante o culto e começaram a gritar palavras como ‘ladrão’ ou frases como “vocês não fazem o que pregam”. A perda de emprego ou mesmo a não contratação por ‘ser crente’ também são uma realidade, segundo Damasceno.
Com o pai de santo Bruno Vieira, a situação não é diferente: além de existirem ataques físicos aos terreiros, há a perseguição psicológica. Comentários maldosos, vizinhos que ligam o som alto na hora dos cultos, além de ameaças também são constantes, segundo o religioso.
“A violência psicológica, a perseguição mental, são tão dolorosas quanto a física. Já passaram carros em frente ao terreiro com pessoas simulando armas, por exemplo. Isso gera um terror psicológico gigantesco. Coloquei câmeras, fiquei com medo”, conta ele.
O âmbito familiar, que por vezes é espaço de acolhimento, torna-se local de divisão simplesmente pelo fato do outro não saber respeitar a fé alheia. “A primeira prática do budismo é justamente seguir a fé para harmonia familiar. E a intolerância se manifesta muitas vezes na família”, afirma a líder budista Soka Gakkai, Sophia Mendonça.
A líder religiosa explica que os budistas têm um altar em um local da casa para que possam fazer orações e meditações, mas que já tiveram vezes em que os praticantes foram impedidos por familiares. “O que observo é que há choque de gerações e falta de conhecimento, pois o nosso altar budista tem simbologia. A nossa oração é feita em sânscrito (dialeto), então quando algumas pessoas veem a nossa manifestação não toleram. Já teve caso que um familiar queimou o pergaminho que continha as orações. A intolerância é por desconhecimento e crença enraizada”.
À frente do Santuário Arquidiocesano Saúde e da Paz, o padre Marcus Vinícius Maciel presenciou, por várias vezes, a intolerância contra o catolicismo e até mesmo a outras religiões. No templo, já houve pessoas destruindo imagens dos Sagrados Corações de Jesus e Maria. No entanto, engana-se quem pensa que o preconceito fica restrito a isso.
“Embora não tenhamos com frequência a violência aos objetos sacros, temos a intolerância com pessoas que questionam e agridem com palavras as pessoas que trabalham no santuário por causa da presença das imagens. Já tivemos episódios desagradáveis até contra minha pessoa. Usando uma Bíblia quiseram me agredir dizendo que eu ia contra ao que era dito nela”, conta.
O santuário liderado pelo sacerdote fica no bairro Padre Eustáquio, onde há uma praça. O espaço é utilizado por membros de religiões de matrizes africanas para a realização de cultos, e o sacerdote comenta já ter presenciado o preconceito de muitas pessoas. “Algumas pessoas querem destruir e agir de forma violenta contra as manifestações. Orientamos para que respeitem, pois todos têm direito de expressar a religião e não temos porque destruir. Da mesma forma que queremos o respeito, devemos respeitar”, diz.
Raiz da intolerância
Os intolerantes, segundo o psicólogo Thales Coutinho, agem como se as pessoas que têm crenças diferentes fossem ‘objetos contaminados’. O sentimento é semelhante ao de nojo, conforme ele, o que provoca a vontade de querer se afastar, de não conviver com outro, enxergando-o como uma ‘doença ambulante’. Um dos motivos para isso reside na generalização: quando um intolerante vê uma pessoa de outra religião, ele geralmente imagina que aquele indivíduo é igual ao estereótipo que se formou daquela crença (geralmente negativo), sendo que, na verdade, não é por aí.
“As pessoas tendem a pensar que alguém que segue uma religião é uma cópia dos outros. Pegam um indivíduo isolado e pensam que ele é igual ao estereótipo. Porém, ao menos que aquela pessoa afronte a crença da outra ou faça algum tipo de coisa ruim, não se pode antecipar que ela agirá de maneira inadequada”, diz ele.
Como combater a intolerância
Apesar de existir um dia reservado para o combate à intolerância religiosa, é improvável que ela acabe de vez, conforme explica o psicólogo Thales Coutinho. Isso porque, afirma ele, esse tipo de preconceito é como a violência: é possível trabalhar para se ter uma sociedade menos violenta, mas dificilmente estaremos livres dela.
Nesse cenário, uma das ações contra a intolerância, segundo Coutinho, é as pessoas de diversas religiões passarem a conviver e a se conhecerem mais. Com isso, vão percebendo que não é porque alguém é de uma determinada religião que terá características negativas. Além disso, diz ele, é importante que os líderes preguem o amor a todos os seres humanos e não somente aos seus pares. “Muitas vezes, se prega o amor apenas ao semelhante, à irmandade. É um ‘ amor ao próximo’ a quem é próximo à sua crença”, afirma.
Os líderes religiosos também afirmam que têm feito a sua parte, mostrando aos fiéis que o amor entre todos é o que deve prevalecer. “Temos de combater a intolerância religiosa com amor. Fazemos trabalhos sociais e não distinguimos nenhuma pessoa por causa da religião; nem as questionamos sobre isso. Nós não buscamos doutrinar ninguém, mas, sim, auxiliar”, diz o pai de santo Bruno Vieira. “Devemos amar as pessoas. Cada um crê no que quer e se não crê em nada está tudo bem também. Não é ecumenismo, mas, sim, manter o diálogo. Sou evangélico, meu pai é umbandista e minha avó era católica. Sempre convivemos bem”, afirma o bispo Carlos Damasceno.
“Como budista vou seguir o direcionamento e exemplo do mestre Daisaku Ikeda: para a intolerância religiosa, o remédio é diálogo e empatia. Devemos mostrar com ação e não só com palavras. Quando não conheço algo me assusto e estranho, mas quando mostro minhas ações, o outro vê que a crença alheia não é um bicho de sete cabeças. O exemplo e o diálogo são chaves para a coexistência harmoniosa entre as religiões”, pontua Sophia Mendonça,
A união entre líderes de várias religiões é cultivada pelo padre Maciel visando dar exemplo para os fiéis. "Temos uma relação muito boa. O pai de santo, por exemplo, quando faz campanha de mantimentos traz para distribuímos às famílias necessitadas que atendemos na paróquia. O mesmo acontece com o pastor protestante. Toda religião prega a paz e o amor, enquanto todo o fanatismo a intolerância. Esse tipo de fanatismo, além de ser racista e discriminatório, é desumano”.
Denuncie
Quem sofre intolerância religiosa é orientado a registrar ocorrência para que o caso seja investigado pelas autoridades policiais. Dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), mostram que em 2021 foram contabilizadas 96 denúncias, enquanto 83 foram feitas de janeiro a novembro de 2022. O II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe aponta aumento dos casos de intolerância religiosa no Brasil. Segundo dados do portal Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foram registrados 477 casos de intolerância religiosa em 2019, 353 casos em 2020 e 966 casos em 2021, um aumento de 173%.
No início deste ano, a sanção presidencial da Lei 14.532/23 equipara injúria racial ao crime de racismo e protege a liberdade religiosa. Agora, o crime pode render de 2 a 5 anos de prisão. O advogado criminalista Felipe Henrique analisa o novo texto legislativo como uma evolução para coibir ainda mais o delito.
“Acredito que poderemos ter redução no número de subnotificações. Agora, quem cometer o crime poderá vir a ser condenado a uma pena mais rígida, o que faz com que a vítima se sinta mais encorajada a procurar as autoridades para prestar queixa. Antes, o regime de cumprimento da reprimenda, independentemente da pena aplicada ao réu, se dava no aberto, e com a atualização, caso a pessoa seja condenada a pena máxima de cinco anos de reclusão, ou qualquer uma outra acima de quatro anos, por exemplo, poderá começar a cumpri-la já no semi-aberto. A lei está mais gravosa", explica o advogado.
A prática do crime de intolerância religiosa está para Felipe Henrique baseada no racismo estrutural da sociedade brasileira. “É bem positiva, e de vanguarda, o enrijecimento da lei neste sentido, pois infelizmente nossa sociedade ainda carrega consigo, e de maneira enraizada em seu DNA, o preconceito que se externa nas várias áreas do nosso cotidiano, e que desagua, infelizmente, até em eventos culturais, como no futebol por exemplo. Creio que o aumento da pena vai coibir determinadas condutas”, analisa.
O especialista acredita ainda ser necessária mais divulgação sobre o crime e suas consequências jurídicas, pois muitos sofrem a intolerância, mas não sabem dos seus direitos. “Entendo que deveria ser mais divulgado para que o indivíduo tenha um norte a quem recorrer quando vier a ser ofendido por tais condutas. Toda pessoa vítima é orientada a lavrar boletim de ocorrência. O Estado é laico, por isso mais um motivo de aprendermos a conviver com as diferenças de forma mais respeitosa e democrática”.
A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH) é o setor do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania que recebe denúncias da sociedade contra todo tipo de violência e abriga o Disque 100. Outra forma de denunciar, em Minas Gerais, é pelo Disque Denúncia 181. A ligação é gratuita.
No Disque Denúncia, a identidade do denunciante e as informações repassadas são preservadas. O informante não se identifica e sua ligação é mantida em sigilo absoluto, de acordo com o Decreto nº 44.633/07. A central de denúncias funciona diariamente, 24h por dia, recebendo ligações de todo o Estado de Minas Gerais.
Sobre a data
O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi instituído no Brasil, pela Lei Federal nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, depois da morte da Iyalorixá baiana e fundadora do Ilê Asé Abassá, Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda. Ela teve a casa e o terreiro invadidos por um grupo de outra religião. Após perseguições e agressões verbais, Mãe Gilda morreu de infarto fulminante.