Morador de Mateus Leme, na região metropolitana de Belo Horizonte, o caminhoneiro aposentado Valme da Rocha recebia um salário mínimo por mês e, durante as últimas décadas, convivia com uma série de problemas de saúde: pressão alta, dificuldade para respirar e a perda de uma perna devido ao diabetes. Aos 70 anos, em março de 2021, após dias em uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) aguardando uma vaga de UTI em um hospital, ele morreu em decorrência de complicações da Covid-19.
Com quase 30 anos a menos e sem nenhuma comorbidade conhecida, a pedagoga Andressa*, 43, também morreu à espera de um leito de tratamento intensivo neste ano. Nos últimos meses, ela continuou indo à escola onde trabalhava, em São José da Lapa, também na região metropolitana da capital, para cuidar de tarefas administrativas.
Quando contraiu o novo coronavírus, ela tentou evitar por vários dias recorrer a uma unidade médica, de acordo com a cunhada, enquanto tentava resistir, em casa, a uma intensa dor na barriga e à crescente dificuldade para respirar. “Foi um choque para todos nós e ainda estamos tentando colocar a cabeça no lugar. Nossas famílias não se encontraram, mas nós também tivemos coronavírus. Meu marido, de 47 anos, é hipertenso e foi parar no hospital, mas agora estamos todos bem”, conta a cunhada da pedagoga, que pediu para ela e a vítima não serem identificadas por respeito ao luto do cunhado e dos sobrinhos.
Os mortos pela Covid-19 em Minas Gerais diferem-se em idade, gênero e raça, mas alguns grupos têm sido mais afetados pela doença. Pessoas como Valme – homem, idoso, pardo e com comorbidades – estão entre as principais vítimas do coronavírus no Estado desde o começo da pandemia.
O perfil geral, no entanto, começou a mudar sensivelmente nos últimos meses, incluindo pessoas como Andressa* e desafiando a lógica de ação baseada nos chamados “grupos de risco”. Em meio à explosão dos números em todo o país e em praticamente todos os segmentos da sociedade desde a virada do ano, dados do Ministério da Saúde revelam aumentos mais acentuados entre as vítimas de faixas etárias inferiores, sem doenças crônicas prévias, de cor branca e do sexo feminino.
“Isso remete àquela discussão antiga da época da epidemia de HIV, nos anos 80 e 90, em que se discutia muito sobre os grupos de risco para a infecção e, depois, esse perfil se modificou e tomou outra dimensão. Às vezes, um processo epidêmico se inicia em determinado grupo populacional, mas a tendência, ainda mais em uma pandemia, é que ele atinja todos os grupos. Hoje, há grupos de maior exposição ao vírus, e não grupos de mais risco”, explica a professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Observatório de Saúde Urbana de Belo Horizonte, Waleska Caiaffa.
Mais jovens
Se no ano passado os mineiros de até 60 anos correspondiam a 18,6% das vítimas do novo coronavírus, essa parcela saltou para 24,3% na segunda onda da doença. Independentemente dos reflexos da vacinação de idosos, as mortes por Covid-19 mais do que triplicaram, de 1,4 para cinco por dia, entre os jovens de 20 a 40 anos, e de oito para 23 (196%) entre os adultos de 40 a 60 anos.
“As hipóteses para o aumento são relacionadas às variantes que estão circulando em quase todo o país. Há não só um número maior de pessoas mais jovens doentes, mas de óbitos. É uma tendência preocupante que estamos monitorando, daí a importância de uma vacinação mais rápida e completa”, argumenta Denise Pimenta, pesquisadora da Fiocruz Minas.
Ainda não há comprovação de que as variantes tenham maior potencial para afetar esse grupo, e outra teoria para esse aumento, apontada pela especialista em saúde pública da UFMG Waleska Caiaffa, é que a população jovem tenha relaxado mais o isolamento social.
“Isso tem que ser estudado do ponto de vista antropológico, mas o que vemos é que os jovens, por sua própria característica de serem jovens, de se socializar, se cansaram dessa situação de isolamento e começaram a buscar alternativas sociais que implicam interação e maior exposição ao risco”, diz a especialista, lembrando a alta de casos da doença após o Carnaval deste ano.
Outra hipótese defendida por Waleska e pelo médico Reginaldo Teófanes, presidente da Central dos Hospitais, associação que representa 543 instituições privadas do Estado, é que muitos jovens chegam às unidades com a saúde já comprometida, por esperarem muito tempo em casa antes de procurarem assistência. “O vírus sabota, do ponto de vista clínico. A pessoa acha que está bem, mas, de fato, ela não está”, pontua a professora da UFMG.
Mais saudáveis
Também chama atenção o maior percentual de vítimas que não apresentavam comorbidades prévias ao contágio pelo novo coronavírus. Pacientes sem histórico de doenças correspondiam a 16,5% dos falecidos no ano passado e, agora, são 22,8%. O aumento foi de oito para 26 óbitos diários (219%) dentro deste grupo no Estado.
“Outro dia, perdemos um paciente de 27 anos. As mortes de quem não tem comorbidades estão aumentando, essas pessoas não estão seguras”, atesta Teófanes, da Central dos Hospitais. O médico lembra que a internação de jovens costuma durar mais tempo, aumentando a pressão sobre o sistema hospitalar. No fim de março, a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) informou que cada leito de UTI comportava apenas dois pacientes por mês em Minas.
Entre os pacientes com comorbidades prévias, as mais comum continuam sendo doenças cardiovasculares (43,2%), diabetes (30%) e obesidade (10,6%).
Mais brancos
A análise dos registros de óbitos do Ministério da Saúde mostra também que os pacientes declarados negros ainda são a maior parte das vítimas do novo coronavírus. O percentual de brancos entre os falecidos, porém, teve o maior aumento, passando de 41,8% para 44,3% do total na comparação entre o ano passado e 2021, aproximando esse índice da proporção geral desse fenótipo observada na população mineira, de 45,4%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Além do relaxamento das medidas de prevenção entre os jovens de classe média, outra hipótese para esse aumento na população declarada branca é que o colapso na rede particular tenha elevado em alguma medida as mortes nesse grupo, considerando-se a relação entre raça e classe social no país.
Em Minas, 72% das pessoas que se declaram pretas ou pardas estão entre os 10% com menor renda, de acordo com o IBGE. Os dados do Ministério da Saúde não informam a faixa de renda dos mortos pela Covid-19, porém a especialista em saúde pública da UFMG Waleska Caiaffa pondera que a classe social, marcada pela raça no Brasil, é um fator de peso na pandemia.
“Os grupos mais expostos são os trabalhadores dos serviços essenciais, que costumam ter um nível educacional mais baixo e estão sujeitos ao transporte público. Isso carrega a questão da cor da pele, parte dessa grande desigualdade que temos historicamente no Brasil”, defende a professora e coordenadora do Observatório de Saúde Urbana de Belo Horizonte.
“O salário mínimo é R$1.045, como pagar um plano de saúde para uma pessoa de 70 anos? Vejo na TV casos de famosos que adoeceram e se tratam de diversas formas. Vem médico não sei de onde para tratar essas pessoas. Mas quem é pobre não tem chance na vida”, comenta a motorista desempregada Rany Moreira, 34, vizinha do caminhoneiro aposentado Valme da Rocha, vítima do novo coronavírus.
A falta de preenchimento na maioria das fichas impede uma análise confiável sobre o nível de escolaridade dos pacientes falecidos, mas as informações disponíveis indicam que a maior parte (42%) possui apenas o primeiro ciclo do ensino fundamental, isto é, da 1ª à 5ª série.
Mais mulheres
A análise dos dados do Ministério da Saúde também mostra que a segunda onda da pandemia de coronavírus está matando mais pessoas do sexo feminino. As mulheres eram 43,4% das vítimas no ano passado e agora representam 47,1% dos óbitos confirmados.
Uma das hipóteses que poderiam explicar esse aumento, de acordo com a especialista em saúde pública da UFMG Waleska Caiaffa, é que elas podem estar saindo mais para trabalhar à medida do agravamento das condições econômicas.
“Isso vai em direção ao espalhamento da epidemia não obedecendo a nenhuma regra. Outra coisa é o agrupamento familiar. Muitas vezes a transmissão é intradomiciliar, de jovens para pais. Notadamente, em muitos lares a mulher é o arrimo da família”, completa a pesquisadora.
*Nome fictício, a pedido da família