Antes de 25 de janeiro de 2019, diariamente às 16h30, ruas e comércios de Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, assistiam a chegada de funcionários da Vale recém-saídos do Córrego do Feijão com o término do expediente e trajando o uniforme verde da mineradora – apelidados "verdinhos" pelos moradores. Vinte e oito meses depois, em maio de 2021, o tráfego de operários com o uniforme tornou-se alvo de ação da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Córrego do Feijão (Avabrum), que pede à Vale a substituição da cor dos trajes usados por trabalhadores da mineração no município. 

Para mães, pais, filhos, irmãos e viúvos que perderam seus entes queridos no rompimento da barragem I, a circulação de pessoas na cidade com uniformes idênticos àqueles usados pelos funcionários da Vale mortos na avalanche de lama reforça a memória da dor provocada pela tragédia. A associação pede a troca dos trajes desde o mês de junho de 2019, o que foi negado pela Vale sob alegação de que os operários não aceitaram a substituição. No último 30 de maio, um formulário para colher assinaturas a favor da troca de uniforme foi criado pela Avabrum. 

'Uniforme que o papai foi morto'

A figura de Eliane Melo com as mãos sobre a barriga da gestação de cinco meses não foge à memória da irmã Josiane Melo, de 39 anos, quando vê operários da Vale trajando camisa na cor da logomarca com mangas longas e botões centrais. Engenheira no Córrego do Feijão, em Brumadinho, Eliane foi morta com a primeira filha no ventre em 25 de janeiro de 2019 com o rompimento da barragem I. Duzentos e setenta funcionários da Vale, terceirizados e moradores do município morreram na tragédia.

Ocupando a presidência da Avabrum, a irmã de Eliane, a também engenheira Josiane Melo, insiste com pedidos à Vale para que o uniforme dos trabalhadores da região seja substituído por roupas com outra cor que não o verde. Para ela, a troca seria uma maneira de minimizar a dor. "Estávamos acostumados com a rotina de, às quatro e meia, aparecer um monte de 'verdinhos' espalhados por todos os lugares, supermercados, farmácias, padarias, bancos... Ver o uniforme, hoje, remete a muita dor, a muitas lembranças das pessoas que se foram, à forma brutal e criminosa da ação da Vale", avalia ela. Ex-funcionária da mineradora, Josiane escapou do colapso da estrutura no Córrego do Feijão. "Eu era engenheira civil antes da Vale acabar com minha carreira e com minha vida. Se eu não tivesse tirado cinco dias de férias, também estaria na lista dos mortos". 

Segundo a associação, os primeiros pedidos para a troca dos uniformes foram feitos em junho de 2019. A empresa, contudo, se negou, alegando que os funcionários não aceitaram a substituição. Para Nayara Cristina, 29, cujo marido, cunhado e irmãos do cunhado foram mortos no 25 de janeiro de 2019, a negativa perante a solicitação de mudança nos trajes ressalta a omissão da Vale nas ações de reparação pelas perdas na tragédia. "Para a Vale é muito fácil trocar os uniformes. Para nós, é questão de honra. Empregado nunca teve voz lá dentro, então, por quê agora estariam se negando a usar? Não existe isso". 

O uniforme na cor verde é lido também como empecilho à recuperação emocional e psicológica de crianças e adolescentes que perderam pais e mães no desastre da Vale, segundo conta Nayara. "Amigas minhas estão preocupados com os filhos. Uma criança de três anos, quando vê o uniforme, diz para a mãe: 'olha lá, mãe, o mesmo uniforme que o papai foi morto'. A gente conseguiu que trocassem a cor do ônibus. Os meninos viam passando nas portas das casas e sentiam falta dos pais descendo dos ônibus da Vale, como sempre faziam. Também queremos a troca do uniforme". 

A criação de um "uniforme-tributo" – como descrito pela Vale – na cor cinza para funcionários ligados às ações de reparação em Brumadinho foi uma estratégia adotada pela mineradora para demonstrar ter escutado o apelo da Avabrum, como acreditam os familiares das vítimas. Entretanto, como esclarece Josiane Melo, o uso da cor por um grupo restrito de trabalhadores não extingue o problema. "Eles não conseguiram colocar isso (o uniforme cinza) para todos os empregados em Brumadinho e nas regiões próximas. A Vale alegou que eles não queriam usar. Não existe reparação justa sem a troca de uniforme". 

Em 25 de março de 2021, dois anos e dois meses depois da tragédia, pais que perderam seus filhos pelo desastre da Vale protestaram contra a manutenção da cor do uniforme. "Já que a Vale assassinou, deveria estar cuidando de nós, familiares. Em cada minuto nos lembramos, sabe? A gente tem a sensação constante de que dormimos no dia 25 (de janeiro de 2019), acordamos no dia 25 e respiramos o dia 25 em todos os segundos da nossa vida. É uma grande revolta, uma grande indignação. São 28 meses de crime, de luto, de dor, de luta, de impunidade. Falam em reparação, em dinheiro, mas ninguém fala em justiça", desabafa Josiane. 

Às 19h de quarta-feira (2), a reportagem de O TEMPO pediu à Vale, por e-mail, um posicionamento sobre o pedido feito pela Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Córrego do Feijão (Avabrum). Até 14h19 de quinta-feira (3), a mineradora não havia respondido a solicitação. 

Outro lado

Na tarde de quinta-feira (3), após última atualização da matéria, a Vale enviou por e-mail nota à reportagem reforçando o uso do uniforme na cor cinza pelos trabalhores ligados ao processo de reparação dos danos provocados pela tragédia da mineradora em Brumadinho. Leia a nota na íntegra: 

"Os empregados envolvidos no processo de Reparação e de unidades produtivas da região começaram a utilizar, em abril de 2020, o novo uniforme da empresa em Brumadinho, na cor cinza. Dessa maneira, boa parte dos empregados com acesso frequente à cidade já não utilizam o uniforme verde.

A Vale alterou ainda o padrão gráfico plotado em toda frota de veículos de transporte de empregados na região a pedido de familiares dos atingidos.

A Vale segue dialogando de forma aberta e respeitosa com todos os atingidos, buscando sempre construir em conjunto soluções equilibradas para os temas"

Atualizada em 7 de junho de 2021 às 21h26.