Crise habitacional

Mineração gera aumento no aluguel em Mariana e evasão de alunos da Ufop sobe 91%

A Samarco, uma das operadoras da barragem que se rompeu em 2015, seria a principal responsável pelo problema; a mineradora recuperou 26% de sua capacidade produtiva

Por José Vítor Camilo
Publicado em 22 de maio de 2023 | 03:00
 
 
Arthur conta que ele e os outros moradores da república promovem festas para ajudar a pagar o aluguel Foto: RODNEY COSTA / O TEMPO

Uma das responsáveis pela barragem de Fundão – que se rompeu em 2015, causando a morte de 19 pessoas e a devastação de distritos –, a mineradora Samarco vem provocando novos transtornos para os moradores de Mariana, na região Central de Minas Gerais. Operando com 26% de sua capacidade total, a empresa foi apontada por fontes ouvidas por O TEMPO como a principal culpada por uma crise habitacional causada pela grande ocupação de imóveis por seus trabalhadores.

Com a demanda maior, os preços estão se tornando impraticáveis, levando alunos da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), que estudam em unidades localizadas em Mariana, a abandonarem seus cursos e até mesmo se mudarem da cidade – a evasão de estudantes de dois institutos da universidade sediados na cidade aumentou em 91% em 2022.

Estudante da universidade, Mauro César de Castro Júnior, de 21 anos, afirma que o problema não é algo novo, já que, desde 2019, quando passou a viver na cidade, os preços dos aluguéis já eram exorbitantes. “Um dos motivos que levam a isso é a especulação imobiliária gerada pelas mineradoras, que elevam os preços para valores muito além do normal. Outro motivo é a ausência de políticas públicas: não existe nenhuma atitude dos políticos para resolver o problema”, ponderou.

Ele conta que vivia em uma casa pagando R$ 1.300 por mês, mas, recentemente, a locatária pediu que ele saísse do imóvel, pois o alugaria por R$ 4.000 para a Renova – fundação criada para atuar na reparação dos estragos do rompimento de Fundão. “Obviamente, a casa não condiz com o valor. É um movimento que tem acontecido. É a população que sofre com isso, pois ninguém com um salário mínimo consegue bancar uma casa na cidade”, reclama Júnior.

Mudança de cidade

Por conta da situação, muitos alunos da Ufop, ainda conforme o universitário, estariam optando por viver em Ouro Preto, cidade que fica a quase 30 minutos de distância. “Muitas repúblicas que existiam há anos em Mariana fecharam e não conseguiram achar outras casas para alugar com um valor acessível. A verdade é que, de fato, nenhum estudante tem condições de morar aqui”, completa Júnior.

Discente do curso de história da universidade, Arthur Rodrigues Silva, de 24 anos, divide a república Mocambos com outros seis estudantes. Apesar do valor alto de aluguel, de R$ 3.500, o imóvel possui um barranco aos fundos que estaria sob risco de desmoronar.

“Só que não temos onde morar além daqui, os aluguéis estão crescendo em uma velocidade absurda. E, mesmo que você esteja em uma casa, tenha o contrato, existe a possibilidade de uma empresa oferecer cinco vezes, até dez vezes mais. Então, temos essa constante insegurança”, disse o universitário que, constantemente, promove festas com os colegas para conseguirem pagar o aluguel.

Posicionamento da Samarco

Procurada, a Samarco informou que, em fevereiro de 2023, contava com 7.400 empregados, sendo 860 da empresa e 6.550 terceirizados ou contratados, a maioria deles com atuação na obra de descaracterização da cava e da barragem Germano, que já estaria em “estágio avançado”.

“Trata-se de um projeto que atende legislações ambientais e contribui para fomentar a economia local. A empresa destaca que prioriza e também orienta as contratadas/terceirizadas a priorizar a contratação de mão de obra local, com o objetivo de gerar desenvolvimento para os municípios de influência direta e reduzir os impactos sociais”, alega.

A mineradora disse ainda que não oferece moradia para seus funcionários e confirmou que aqueles que vivem em Mariana utilizam os hotéis, pousadas e casas

Evasão subiu 91% em 2022

Um relatório produzido neste ano pela Ufop apontou que, em 2022, houve um aumento de 91% no índice de evasão dos alunos dos institutos de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) e Ciências Sociais Aplicadas (ICSA), que, juntos, totalizam cerca de 3.000 estudantes matriculados. O aumento ocorreu após o retorno total das atividades presenciais, após a pandemia, com o número de alunos que abandonaram os cursos passando de 296, em 2021, para 567 no ano passado.

O diretor do ICHS, Mateus Henrique de Faria Pereira, lembra que a universidade movimenta cerca de R$ 40 bilhões por ano. “Nós somos uma espécie de indústria verde e achamos que o poder público, em especial a Renova, podem contribuir para essa solução. A gente está sofrendo com a falta de ocupação das vagas, e a evasão dos alunos, é quase uma expulsão em função desses altos aluguéis”, argumenta.

Ufop faz proposta de solução

Apesar de defender que a Samarco e a fundação Renova sejam as principais responsáveis pela solução do problema, o diretor do ICHS afirma que as outras mineradoras menores, que estão “chegando” à cidade, também poderiam contribuir para o problema.

“Por isso, fizemos uma proposta destas empresas custearem 270 bolsas para nossos alunos, de cerca de R$ 500, durante os quatro a cinco anos do curso. Isso poderia amenizar este problema da evasão que estamos vivendo”, defendeu Pereira.

Alunos de baixa renda são mais atingidos

Doutor em educação e funcionário do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação da UFMG, Eucidio Pimenta Arruda acredita que o alto preço dos aluguéis limita a entrada e a permanência de estudantes de baixa renda na universidade pública e, por isso, deveria ser alvo de políticas públicas, tanto municipais quanto federais.

“É importante para o município fomentar a formação em nível superior, então, talvez caiba à cidade analisar de que forma ela pode ajudar esses estudantes, com políticas de moradia. Por outro lado, o governo federal também precisa ampliar o apoio financeiro a esses estudantes carentes. Há poucas políticas, cada vez menos dinheiro sendo investido nas universidades públicas, e isso impacta exatamente as pessoas mais pobres, que não têm condições de uma garantia mínima de sobrevivência fora da cidade em que vivem”, disse.

A Fundação Renova também foi procurada, e informou, por nota, que a tendência é que a demanda de moradias custeadas por ela se reduza com a mudança das famílias para os novos distritos. "A Fundação Renova busca sempre negociar os menores custos, contudo, os aluguéis são determinados pela oferta e a demanda do mercado", concluiu.

Comissão discute assunto na Câmara

Após o acionamento pela Ufop, a Câmara Municipal de Mariana criou, em março deste ano, uma comissão para acompanhar e elaborar relatórios sobre os preços praticados no mercado imobiliário do município. De acordo com o vereador Fernando Sampaio (PSB), presidente da Casa, até o momento, o relatório não foi elaborado pelo fato de a comissão ainda estar em “fase de discussão”.

“Hoje (quinta-feira, dia 18 de maio) teremos uma reunião com a Samarco. Uma das propostas é obter alguma contrapartida da empresa para solucionar essa questão. A atuação da comissão é de extrema importância para enfrentarmos esse desafio”, afirmou o parlamentar.

Preço empurra morador para casa úmida e mofada

A gente vai trabalhar só para pagar aluguel? Tenho que trabalhar em dois lugares para me manter aqui em Mariana?”. A frase é do padeiro José Antônio Gomes, que, recentemente, viu seu aluguel passar de R$ 550 para R$ 1.700, um aumento de 209%. “Morei mais de 20 anos no bairro São Pedro, mas aí o dono pediu a casa. Fui procurar aluguel, e os preços iam de R$ 2.000 a R$ 6.000. Coitado de um pai de família para conseguir sobreviver em Mariana”, reclamou.

A professora particular Letícia Castilio, de 24 anos, viveu uma verdadeira peregrinação de casas desde que se mudou para Mariana, em 2017, para cursar letras. Todos os aluguéis acessíveis para ela e o companheiro eram em casas de péssima qualidade, como porões com muita umidade e mofos, que acabavam causando problemas de saúde no casal. “A gente pagava R$ 500 de aluguel, mas, com sinusite, asma e rinite, a gente tinha que gastar mais de R$ 400 por mês com remédios”, disse.

Com o tempo, a jovem acabou precisando trancar o curso, já que não conseguia viver perto da universidade. Por fim, apesar de o noivo ser natural de Mariana, o casal e a filha pequena acabaram se mudando para Conselheiro Lafaiete, cidade a cerca de uma hora e meia de distância, por não encontrarem um imóvel com preço acessível. “A gente estava construindo a nossa casa, aos pouquinhos, e, mesmo assim, tivemos que sair. Espero que um dia a gente possa voltar”, lamentou a ex-universitária.

A professora Adriana da Guia Santos, de 52 anos, também foi surpreendida, no início deste ano, com a notícia de um reajuste de 55% no valor de seu aluguel. Após dizer que verificaria a legalidade do reajuste, no dia seguinte, ela recebeu uma ligação da proprietária do imóvel comunicando que ela teria 30 dias para desocupar a casa.

“Foi um período muito ruim, que mexeu com minha autoestima mesmo. Tive que sair às pressas e acabei me desfazendo dos meus móveis, pois arrumei um local bem pequeno, com valor dentro das minhas condições. E aí me desfiz das minhas coisas”, lamentou.

Moradores criaram associação

Com o problema afetando uma grande parcela da população da cidade, não demorou para que as pessoas se juntassem em grupos nas redes sociais para dialogar sobre o assunto. Foi assim, a partir dessa troca de ideias e “reclamações”, que surgiu o movimento “Queremos Nossa Casa”, que acabou culminando, no fim de abril, na criação da Associação Nossa Casa, que luta por melhores políticas habitacionais no município.

Integrante do movimento, Erenildo Euzébio detalha os objetivos da entidade. “Vamos reivindicar uma reparação financeira por parte das mineradoras, que elas auxiliem no projeto habitacional de Mariana. Também vamos cobrar do poder público municipal que cumpra seu papel, de planejar a cidade. Nunca tivemos um Minha Casa, Minha Vida aqui”, contou.

Segundo ele, o problema já chegou a um ponto insuportável, com pessoas, literalmente, sendo expulsas de suas casas. “O problema se agravou demais após o rompimento, e, agora, muitas pessoas estão desistindo de morar na cidade. O que sobra para as pessoas viverem são casas úmidas ou porões”, completou Euzébio.

Na nota enviada a O TEMPO, a Samarco afirma que “possui um diálogo contínuo e transparente, por meio de processos sistemáticos de escuta e reuniões com moradores das comunidades e representantes de diversas entidades”.

Entretanto, segundo o integrante do movimento, não é bem assim. “Nas poucas reuniões e audiências públicas que ocorreram, as mineradoras não compareceram. A prefeitura até apareceu, com várias secretarias, mas a participação dela foi muito frustrante. O procurador do município, inclusive, chegou a dizer que não poderiam fazer política pública habitacional, porque isso iria interferir na oferta e na demanda”, lembra o membro do movimento.

A Prefeitura de Mariana também foi procurada, mas não havia se posicionado até a publicação da reportagem.

Problema já tem mais de 50 anos

Surgida no ciclo do ouro, Mariana já foi criada em função da mineração e, quando o metal acabou, a cidade ficou estagnada até as décadas de 1960 e 1970, quando a extração de ferro chegou ao município e gerou uma grande expansão populacional. A arquiteta e urbanista Isabela de Oliveira, que é natural do município, destaca que, no início, a chegada da Samarco e da Vale tiveram uma “relação” diferente com a sociedade, com investimentos espaciais na cidade.

“Houve a construção de vilas operárias, de espaços públicos, postos de saúde, tudo pensado muito na manutenção dessa mão de obra para esses setores. Mas, por outro lado, não houve uma política de planejamento urbano da cidade como um todo. Muita gente chegou a Mariana, e, então, surgiram novos bairros, mas com pouca infraestrutura”, destacou a especialista.

O problema ainda teria sido agravado pela privatização da Vale, em 1997, o que levou a uma redução nos investimentos na infraestrutura da cidade e ao aumento na terceirização dos trabalhadores. “O rompimento intensificou os conflitos que já existiam. Essa alta dos preços está muito envolvida no processo de concentração fundiária que o setor exerce. Quando você vê o território de Mariana, ele é enorme perto das áreas urbanas, existe muita área para expansão imobiliária. Mas a mineração é uma atividade muito expansiva, já que, quando o recurso acaba em um lugar, ela vai se deslocando e, por isso, demanda uma grande concentração fundiária”, argumentou.

Para Kênio Pereira, advogado especialista em direito imobiliário, os preços de aluguéis são determinados pela lei de oferta e demanda, porém, quando essa maior procura é causada por um grande conglomerado ou setor empresarial, o “problema” pode ser resolvido por meio da construção de abrigos ou alojamentos para os seus trabalhadores.

“Já vi acontecer, por exemplo, na Bahia, onde estavam construindo uma ferrovia e criaram uma ‘minicidade’ para comportar os funcionários. E o interessante é que, ao promover isso, essas empresas transformam a região, com estímulo às construtoras, comércios. Isso é bom para a cidade”, pondera Pereira.

A arquiteta Isabela de Oliveira destaca também que, atualmente, a Fundação Renova estaria assumindo um papel do Estado. “É uma função que não deveria ser dela, pois é uma empresa privada assumindo um papel que não cabe a ela. A empresa pensa nos reassentamentos, mas não na lógica macro da cidade, no déficit habitacional”, explicou.