Capital

Noventa anos de canalização 

Livro que será lançado em outubro conta a história de leitos que foram fechados nas últimas décadas

Por RAFAEL ROCHA / Bárbara Ferreira
Publicado em 20 de setembro de 2015 | 03:00
 
 
Foto mostra antes e depois da obra de canalização no Ribeirão Arrudas Lincon Zarbietti/O Tempo

Parece história de pescador, mas o pai de Alessandro Borsagli, 35, fisgou mesmo uns bons bagres com seu avô quando eles saíam noite afora pelo leito do ribeirão Arrudas em busca dos peixões. Oitenta anos depois, a imagem parece inconcebível, tamanha a degradação pela qual os rios de Belo Horizonte passaram – boa parte deles coberta por ruas e avenidas. A canalização de córregos na capital não é um fenômeno recente, apesar de a sociedade vir tratando do assunto com maior ênfase desde 2007, quando a cobertura do Arrudas foi iniciada. Já na década de 20, segundo Borsagli, a cidade deu início à cobertura de seus rios.

Com o passado permeado pelas histórias vividas por seu pai no entorno do ribeirão, Borsagli, agora geógrafo, resolveu escrever um livro sobre os rios urbanos que foram canalizados ao longo das décadas. Na obra “Rios Invisíveis da Metrópole Mineira”, que será lançada em outubro, o autor remonta à época da construção da capital e demonstra, cronologicamente, como os leitos foram sendo cobertos à medida que o tempo passava.

“O primeiro foi o córrego da Serra, mas a maioria dos leitos foi tapada mesmo entre os anos de 1963 e 1978, uma época em que a capital mineira era considerada a que mais crescia no país”.

Entre os cursos d’água estão os córregos Leitão (na avenida Prudente de Morais), Serra (que desce do bairro de mesmo nome até o Funcionários) e Acaba Mundo (na rua Uruguai, no Sion), todos na região Centro-Sul e integrantes da bacia do ribeirão Arrudas. “Nossas águas foram marginalizadas, escondidas, e deram lugar a avenidas que viraram receptoras de esgoto”, critica o pesquisador.

Segundo dados da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), dos 654 km de rios que cortam Belo Horizonte, 208 km são invisíveis para quem anda pela cidade, e a maioria está tapada por concreto, recebendo ruas e avenidas. Para o autor do livro, as justificativas dadas pelo poder público, como a redução da poluição, de enchentes e melhorias no trânsito, não dão conta do tamanho do problema.

O impacto dessas canalizações não somente afeta a paisagem da cidade, mas também altera o modo de vida das grandes metrópoles, segundo Borsagli. “A cidade perdeu o respeito pelos elementos naturais. O ser humano acha que tem capacidade de controlar a natureza, mas não tem. (A canalização) afeta o clima. Com o aumento da malha asfáltica, a cidade esquentou”.

Rios invisíveis

Água. A capital possui quatro grandes bacias (Arrudas, Isidoro, Onça e Velhas), 98 bacias elementares e 256 sub-bacias. Dos 654 km de rios, 165 km (25%) deram lugar a avenidas sanitárias.

Moradores cultivam memórias de infância às margens de rios

Quem viveu em Belo Horizonte numa época em que grandes córregos ainda estavam abertos costuma nutrir tristes lembranças, frutos de enchentes que marcaram a cidade. Em 1983, uma grande enchente no Arrudas causou destruição e a morte de mais de cem pessoas.

“Quando o rio enchia, levava barracões do Alto Vera Cruz, móveis das casas e até gente”, relembra o fotógrafo Elias Henrique, 55. Durante sua infância no bairro Caetano Furquim, na região Leste da capital, ele tinha que atravessar o rio por uma ponte de madeira para chegar à escola no Esplanada, bairro vizinho ao seu.

FOTO: Alex de Jesus
Em nova fase de obras do Bulevar Arrudas, já é possível ver faixa de asfalto onde antes passava o rio

Para o pesquisador Alessandro Borsagli, 35, no entanto, a população em geral aprova a canalização de rios devido à propaganda do poder público desde a década de 50. “Anos depois da cobertura do primeiro rio, uma enchente arrasou a capital, em 1929, e isso provou que aquilo não resolvia a questão das enchentes”, diz. Para ele, achar que canalizar os leitos d’água vai trazer benefícios viários e de saneamento é um equívoco.

Na memória da artista plástica Thereza Portes, 48, o fechamento do leito do córrego do Leitão, que nasce no bairro São Bento e passa sob a rua Padre Belchior, no centro, deixou tantas marcas que a motivou a promover a ação Nessa Rua Tem um Rio, que visa resgatar memórias de uma vida passada às margens do córrego.

“Foi uma catástrofe quando fecharam o rio”, relembra Thereza, que na época tinha 9 anos. “Ele foi bastante presente na minha infância. Minha mãe e uma tia-avó me contavam várias histórias, como a de uma vizinha que todos os dias ouvia música clássica em volume muito alto na beira do córrego e era a sensação da vizinhança”, rememora a coordenadora da ONG Undió.

Cursos d’água são tema de estudo

Uma equipe de pesquisadores coordenada pelo arquiteto espanhol Antonio Hoyuela Jayo realizou um estudo que reconta a história da construção de Belo Horizonte, no fim do século XIX, por meio dos mapas cartográficos desenvolvidos na época.

Foi a partir da cidade pensada naquele período pelo sanitarista Saturnino de Brito (1864-1929), que contemplava outra ideia para os rios que correm embaixo das ruas da capital mineira, que Jayo criou o projeto Utopia. A ação desenhou uma “nova BH” a partir da modernização dos mapas cartográficos.

FOTO: Arquivo Público Mineiro/Divulgação
Ribeirão Arrudas corria livre no bairro Esplanada, na região Leste

A ideia é valorizar os cursos d’água da cidade e estabelecer parâmetros de planejamento que, se tivessem sido seguidos ainda na virada do século XIX para o XX, fariam com que a capital tivesse mais áreas verdes, respeitando o traçado original dos seus rios.

O projeto Utopia ainda faz parte de uma ação maior, chamado de Mapa Histórico Digital da Cidade de Belo Horizonte, que pretende aprofundar os conhecimentos sobre os trabalhos da Comissão Construtora da Nova Capital, presidida pelo engenheiro Aarão Reis (1853-1936), analisando e digitalizando os principais mapas das plantas do Curral del Rey.