O corpo de uma mulher vítima de feminicídio estendido tem significados profundos e nuances muito mais complexas do que aquelas feridas perceptíveis a olho nu. Ali, por trás do que se vê, estão sonhos, projetos e desejos daquela vítima, permanentemente arruinados. O crime hediondo apaga a história da maternidade daquela mulher e deixa um rastro de dor nos órfãos dela. São crianças, adolescentes e adultos que precisam reconstruir suas vidas diante da ausência repentina da mãe, da referência que tinham, do zelo, do cuidado e do amor materno.

Embora invisíveis nas estatísticas do poder público, seis pessoas por dia ficam órfãs do feminicídio no Brasil, segundo uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2021 foram estimados 2.321 filhos de mães assassinadas pela violência de gênero. 

Enquanto os policiais cavavam a terra de um lixão, a autônoma Rosiane da Silva Gonçalves, de 35 anos, esperava com um misto de sentimentos de dor, tristeza e alívio o corpo da mãe dela ser desenterrado. Maria do Carmo da Silva Gonçalves, de 58 anos, ou “Carminha”, como era carinhosamente chamada, estava desaparecida havia quase quatro anos. Quanto mais terra era retirada, mais forte ficava o sentimento de dualidade em Rosiane de querer encontrar a mãe, mas de saber também que ali estavam enterrados apenas os ossos de Carminha. A mulher foi morta pelo vizinho Roberto Lopes, de 58 anos, com quem ela tinha um relacionamento, e enterrada em um lote vago.

 

“No dia 9 de dezembro de 2017, minha mãe saiu de casa com a roupa do corpo. Deu a impressão de que ela iria na esquina e voltaria logo, mas esse ‘voltar’ dela levou quatro anos. Nesse dia, o vizinho colocou fogo em pneu e colchão. Eu passei e brinquei com ele dizendo que ele estava animado demais e ele disse que era uma infestação de escorpião que havia na casa dele. Tem um aterro em frente no local, e eu não desconfiei de nada, mas era o corpo da minha mãe que estava ali sendo queimado para depois ser enterrado”, conta Rosiane.

O corpo de Carminha foi encontrado em 17 de novembro de 2021 em Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, na mesma rua em que ela morava. O assassino confesso disse que,  após uma briga, a mulher teria dado um tapa em seu rosto, e ele jogou o prato de comida na face dela. Carminha teria caído, batido a cabeça e morrido. O suspeito disse que ficou com medo e, por isso, escondeu os restos mortais da vítima. Só que aquele corpo que ele queimou e jogou fora como um lixo era o de uma mãe zelosa, amorosa e referência para a filha. 

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“Hoje eu vejo ela como uma heroína. Uma pessoa que foi muito guerreira, que lutou muito, que foi companheira, que foi amiga. Pode não ter sido a melhor das mães, a pessoa mais perfeita, mas ela era a minha mãe. Às vezes, a gente, como mãe e filha, se desentendia, mas hoje eu vejo com tanta clareza o cuidado, o carinho, o amor, o zelo. Hoje, eu sinto como se tivessem tirado meu chão, como se eu estivesse andando em uma corda bamba, com um buraco imenso embaixo dos meus pés. Eu não tenho uma referência, não tenho aquela pessoa que eu sentia uma dorzinha no estômago, corria no quintal e preparava um chá e levava para mim sem eu pedir. É uma dor que eu vou carregar para sempre, uma falta que eu vou carregar para sempre”, desabafa a autônoma. 

Maioria das mulheres é assassinada por companheiro ou ex-companheiro

Rosiane nunca imaginou que o vizinho poderia matar a mãe, afinal de contas, Carminha levava um prato de comida todos os dias na casa dele. Uma forma de cuidado que parecia digna de retribuição com amor. Mas, embora esse fato tenha sido uma surpresa para Rosiane, a situação não é atípica, já que 84% das mulheres vítimas do feminicídio foram mortas por companheiros ou ex-companheiros. Isso faz com que muitos órfãos fiquem sem a figura materna e ainda vejam o pai se tornar um assassino. 

Foi o que aconteceu com a estudante Gabriela Campos Rezende Silva, de 18 anos, quando, no dia 23 de agosto de 2017, aos 12 anos, ela foi retirada da escola para receber a notícia de que o pai dela, Artur Campos Rezende, na época com 49 anos, tinha matado a mãe dela, Lílian Hermógenes da Silva, de 44, no bairro Industrial, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. 

“É uma sensação do mundo cair na sua cabeça”, Gabriela descreve o que sentiu ao receber a notícia. “Eu ainda não entendo que ela faleceu. Eu choro pela falta dela todos os dias. Não tem um dia que eu não pense nela aqui. Estou no terceiro ano, está chegando a formatura, e minha mãe não vai me acompanhar”, lamenta. Gabriela viu sua vida mudar completamente após o crime. Ela e o irmão, que na época tinha 9 anos, foram morar com a avó materna, tiveram que lidar com uma nova estrutura familiar e precisaram desconstruir a figura de herói do pai para a do assassino da mãe e causador de muita tristeza em suas vidas. 

“A gente teve que amadurecer muito mais rápido. Ter que se adaptar a uma nova casa e depois de um tempo a uma nova escola. A gente viu nossa vida desmoronando. Perdemos a mãe e perdemos um pai, que, querendo ou não, foi uma figura paterna na nossa vida, principalmente para o meu irmão. A minha mãe, eu e meu irmão fomos apunhalados pelas costas. Fomos literalmente traídos”, conclui Gabriela. Lílian era oficial de apoio administrativo do Ministério Público e trabalhava na Promotoria de Defesa dos Direitos da Mulher. Ela foi assassinada após terminar o relacionamento com o suspeito, que foi até a frente da casa da mãe dela e a matou quando ela saía para trabalhar. 

Avós maternas se tornam mães dos filhos do feminicídio

Com a mãe assassinada, os órfãos do feminicídio são, na maioria das vezes, criados pela avó materna, que passa a ser a mãe deles. “Eu lembro quando eu tinha 8 anos, eu tropecei, minha avó riu e depois começou a chorar, e eu perguntei o porquê de ela estar chorando. Ela disse que era porque tinha jurado que nunca mais ia sorrir depois que minha mãe morreu. Aquilo me deu uma confusão gigantesca. Eu chorei bastante, abracei ela. Eu acho que uma das maiores dores que eu senti foi ver minha avó chorar. É uma cena que me dá agonia. Ver aquele ser que me trazia tanta força e tanto amor chorar”, conta o estudante de psicologia Emanuel Santos, de 26 anos. 

Depois que sua mãe, Gerlândia dos Santos, foi assassinada, aos 21 anos, ele passou a ser criado pela avó materna, que se tornou sua referência materna. Emanuel tinha apenas 4 anos quando pai dele, Francisco Soares Lopes, resolveu dar tiros em Gerlândia por ela ter exigido pensão alimentícia para o filho. A família morava em Santana do Matos, cidade do Rio Grande do Norte. “Meu pai era da época do coronelismo. Ele tinha vários filhos e dizia que o dia que uma mulher colocasse ele na Justiça ele a mataria, e assim ele fez. Minha mãe tinha só 17 anos quando ela me teve. Ela não tinha condições de me criar e, por isso, pediu ajuda do meu pai. Aí ele fez isso com ela”, conta o estudante de psicologia. 

Impunidade de assassinos atormenta vítimas 

Com os assassinos das vítimas de feminicídio soltos, são os órfãos do femincídio que se sentem presos. Por alguns anos, Gabriela e o irmão foram restringidos pela avó materna de sair de casa por medo de que o pai deles e assassino da mãe fizesse algo com os filhos.

“A gente tinha medo de ficar em casa. A família dele ia muito à casa da minha avó, ele enviava cartas dizendo que não tinha matado minha mãe. Até hoje eu me sinto muito limitada. Alguns lugares que gostaria de ir, coisas que gostaria de fazer e não faço por ter medo de me encontrar com ele”, relata. 

A estudante chegou a deparar-se com o pai em um shopping de Contagem uma vez. “O meu corpo chegou a arrepiar. Ele não nos viu, e fomos embora. É muito ruim. Às vezes, sinto vontade de voltar ao bairro em que eu morava, de reencontrar alguns primos paternos, mas não tem mais como. Hoje eu espero que seja feita a justiça divina, porque a dos homens está difícil”, lamenta Gabriela. Apesar de o crime ter ocorrido há quase cinco anos, ainda não houve julgamento.

 

Órfãos do feminicídio precisam de apoio psicológico e se sentem desamparados pelo poder público 

Depois de perderem a mãe de maneira tão trágica e algumas vezes terem o pai como assassino, os filhos do feminicídio passam por um turbilhão psicológico, que envolve abandono da escola, tentativa de suicídio, crises de ansiedade, introspecção, reprodução de violência doméstica, dificuldade em relacionamentos amorosos e apatia.

Vivenciar o crime faz com que, na opinião de especialistas, os órfãos precisem de psicoterapia associada a outros tratamentos para que consigam lidar com as dores da tragédia. O problema é que raramente esse tratamento é oferecido pelo poder público. Assim como também não há apoio financeiro, o que faz com que essas vítimas não consigam arcar com os custos desse amparo.

Procurado para falar sobre essa ajuda aos órfãos do feminicídio, o governo do Estado informou que não tem nenhuma política específica para eles. Há em Minas Gerais diversas ações voltadas para a prevenção do feminicídio, mas, depois do que ele acontece, não há uma estrutura de Estado focada no amparo aos que ficam com a dor da perda das mães.

Ainda tramita na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), de autoria da deputada Ana Paula Siqueira (Rede), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, um Projeto de Lei (PL) com políticas públicas específicas para os órfãos do feminicídio.

Até que isso vire uma política de governo, com contratação de profissionais que possam fazer o atendimento especializado e o levantamento dos órfãos do femincídio, algumas ações isoladas são colocadas em prática. Recentemente, os órfãos atendidos nas delegacias de Belo Horizonte dentro desse contexto de morte violenta das mães passaram a ser encaminhados para um atendimento terapêutico na universidade Fumec, em uma parceria com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).