Crise habitacional

Preço do aluguel em Mariana empurra morador para casa úmida e mofada

Após o rompimento da barragem de Fundão, o problema se agravou na cidade

Por José Vítor Camilo
Publicado em 22 de maio de 2023 | 03:00
 
 
O que restam aos moradores de baixa renda, muitas vezes, são casas úmidas e tomadas pelo mofo Foto: RODNEY COSTA / O TEMPO

"A gente vai trabalhar só para pagar aluguel? Tenho que trabalhar em dois lugares para me manter aqui em Mariana?”. A frase é do padeiro José Antônio Gomes, que, recentemente, viu seu aluguel em uma casa simples de Mariana, na região Central de Minas Gerais, passar de R$ 550 para R$ 1.700, um aumento de 209%. A situação escancara que não a atuação das mineradoras na cidade não impacta apenas os estudantes da Ufop, com a elevação de 91% na evasão, mas, também, todos os moradores de baixa renda da cidade.

“Morei mais de 20 anos no bairro São Pedro, mas aí o dono pediu a casa. Fui procurar aluguel, e os preços iam de R$ 2.000 a R$ 6.000. Coitado de um pai de família para conseguir sobreviver em Mariana”, lamenta. A situação dele é parecida com a da professora particular Letícia Castilio, de 24 anos, que viveu uma verdadeira peregrinação de casas desde que se mudou para Mariana, em 2017, para cursar letras.

Todos os aluguéis acessíveis para ela e o companheiro eram em casas de péssima qualidade, com porões com muita umidade e mofos, que acabavam causando problemas de saúde no casal. “A gente pagava R$ 500 de aluguel, mas, com sinusite, asma e rinite, a gente tinha que gastar mais de R$ 400 por mês com remédios”, disse.  

Com o tempo, a jovem acabou precisando trancar o curso, já que não conseguia viver perto da universidade. Por fim, apesar de o noivo ser natural de Mariana, o casal e a filha pequena acabaram se mudando para Conselheiro Lafaiete, cidade a cerca de uma hora e meia de distância, por não encontrarem um imóvel com preço acessível. “A gente estava construindo a nossa casa, aos pouquinhos, e, mesmo assim, tivemos que sair. Espero que um dia a gente possa voltar”, lamentou a ex-universitária. 

A professora Adriana da Guia Santos, de 52 anos, também foi surpreendida, no início deste ano, com a notícia de um reajuste de 55% no valor de seu aluguel. Após dizer que verificaria a legalidade do aumento, no dia seguinte ela recebeu uma ligação da proprietária do imóvel comunicando que ela teria 30 dias para desocupar a casa.  

“Foi um período muito ruim, que mexeu com minha autoestima mesmo. Tive que sair às pressas e acabei me desfazendo dos meus móveis, pois arrumei um local bem pequeno, com valor dentro das minhas condições. E aí me desfiz das minhas coisas”, lamentou.  

Moradores criaram associação

Com o problema afetando uma grande parcela da população da cidade, não demorou para que as pessoas se juntassem em grupos nas redes sociais para dialogar sobre o assunto. Foi assim, a partir dessa troca de ideias e “reclamações”, que surgiu o movimento “Queremos Nossa Casa”, que acabou culminando, no fim de abril, na criação da Associação Nossa Casa, que luta por melhores políticas habitacionais no município.  

Integrante do movimento, Erenildo Euzébio detalha os objetivos da entidade. “Vamos reivindicar uma reparação financeira por parte das mineradoras, que elas auxiliem no projeto habitacional de Mariana. Também vamos cobrar do poder público municipal que cumpra seu papel, de planejar a cidade. Nunca tivemos um Minha Casa, Minha Vida aqui”, contou.  

Segundo ele, o problema já chegou a um ponto insuportável, com pessoas, literalmente, sendo expulsas de suas casas. “O problema se agravou demais após o rompimento, e, agora, muitas pessoas estão desistindo de morar na cidade. O que sobra para as pessoas viverem são casas úmidas ou porões”, completou Euzébio.  

Na nota enviada a O TEMPO, a Samarco afirma que “possui um diálogo contínuo e transparente, por meio de processos sistemáticos de escuta e reuniões com moradores das comunidades e representantes de diversas entidades”.  

Entretanto, segundo o integrante do movimento, não é bem assim. “Nas poucas reuniões e audiências públicas que ocorreram, as mineradoras não compareceram. A prefeitura até apareceu, com várias secretarias, mas a participação dela foi muito frustrante. O procurador do município, inclusive, chegou a dizer que não poderiam fazer política pública habitacional, porque isso iria interferir na oferta e na demanda”, lembra o membro do movimento.  

A Fundação Renova foi procurada e informou, por nota, que a tendência é que a demanda de moradias custeadas por ela se reduza com a mudança das famílias para os novos distritos. "A Fundação Renova busca sempre negociar os menores custos, contudo, os aluguéis são determinados pela oferta e a demanda do mercado", concluiu.A Prefeitura de Mariana também foi procurada, mas não havia se posicionado até a publicação da reportagem.  

Privatização da Vale e tragédia de Fundão foram agravantes

Surgida no ciclo do ouro, Mariana já foi criada em função da mineração e, quando o metal acabou, a cidade ficou estagnada até as décadas de 1960 e 1970, quando a extração de ferro chegou ao município e gerou uma grande expansão populacional. A arquiteta e urbanista Isabela de Oliveira, que é natural do município, destaca que, no início, a chegada da Samarco e da Vale tiveram uma “relação” diferente com a sociedade, com investimentos espaciais na cidade.  

“Houve a construção de vilas operárias, de espaços públicos, postos de saúde, tudo pensado muito na manutenção dessa mão de obra para esses setores. Mas, por outro lado, não houve uma política de planejamento urbano da cidade como um todo. Muita gente chegou a Mariana, e, então, surgiram novos bairros, mas com pouca infraestrutura”, destacou a especialista.  

O problema ainda teria sido agravado pela privatização da Vale, em 1997, o que levou a uma redução nos investimentos na infraestrutura da cidade e ao aumento na terceirização dos trabalhadores. “O rompimento intensificou os conflitos que já existiam. Essa alta dos preços está muito envolvida no processo de concentração fundiária que o setor exerce. Quando você vê o território de Mariana, ele é enorme perto das áreas urbanas, existe muita área para expansão imobiliária. Mas a mineração é uma atividade muito expansiva, já que, quando o recurso acaba em um lugar, ela vai se deslocando e, por isso, demanda uma grande concentração fundiária”, argumentou. 

Construção de alojamentos pode ser saída, diz especialista

Para Kênio Pereira, advogado especialista em direito imobiliário, os preços de aluguéis são determinados pela lei de oferta e demanda, porém, quando essa maior procura é causada por um grande conglomerado ou setor empresarial, o “problema” pode ser resolvido por meio da construção de abrigos ou alojamentos para os seus trabalhadores.  

“Já vi acontecer, por exemplo, na Bahia, onde estavam construindo uma ferrovia e criaram uma ‘minicidade’ para comportar os funcionários. E o interessante é que, ao promover isso, essas empresas transformam a região, com estímulo às construtoras, comércios. Isso é bom para a cidade”, pondera Pereira.  

A arquiteta Isabela de Oliveira destaca também que, atualmente, a Fundação Renova estaria assumindo um papel do Estado. “É uma função que não deveria ser dela, pois é uma empresa privada assumindo um papel que não cabe a ela. A empresa pensa nos reassentamentos, mas não na lógica macro da cidade, no déficit habitacional”, explicou.