A morte está presente no cotidiano, na memória, nos espaços, mas relutamos em nos defrontar com ela e criamos superstições sobre os mortos. Há os que têm receio de funerária, passam longe de uma – onde, inclusive, se usa a palavra urna e não caixão. Outros têm medo de cemitério e, quando vão, não encostam em nada, lavam a roupa ao chegar em casa como se a morte fosse contagiosa. Já os que lá trabalham, e não são só coveiros – tem construtor (de túmulos), letrista (para as lápides), zeladores –, vivenciam a morte na rotina, pelo fato de o cemitério ser nosso derradeiro dormitório.
“Não tenho medo, a palavra de Deus fala: ‘é melhor ir ao lugar de luto do que ao de festa’”, diz o fiscal Adilson Carneiro, 50, que desde os 20 anos percorre as alamedas do centenário Bonfim para ver se está tudo certo com os que “moram” ali nos jazigos, próximo ao centro de Belo Horizonte – coisa do século passado, já que hoje os novos cemitérios ficam cada vez mais longe. “Antigamente, eram cuidados pelas igrejas; com a expansão das cidades, eles migraram para a periferia, onde ninguém vê nem pensa na morte. É uma forma de censura”, interpreta o teólogo Renato Alves, apontando uma mudança no requinte dos jazigos. “Antes, gastava-se muito para fazer os túmulos, hoje, a ostentação é em vida”, percebe Carneiro, contemplando a “área VIP” do Bonfim, na alameda principal, onde estão as sepulturas mais suntuosas.
Envelhecer. A repressão cultural da morte não está só no cemitério. Ela começa sutilmente no processo de envelhecer, com as indústrias dos cosméticos, das academias e das cirurgias plásticas, que tentam apagar as marcas do tempo para não se pensar no fim. “Se as pessoas aceitassem mais os limites do corpo, certamente elas teriam uma aceitação melhor da morte”, recomenda Alves. Entendimento que a historiadora Marcelina Almeida – com doutorado sobre cemitérios – resume: “Começamos a morrer assim que nascemos”.
E, ao morrermos, entra o trabalho dos tanatopraxistas na preparação dos corpos – com cosméticos – para ficarem bonitos e fiéis à imagem daquela pessoa, uma espécie de última homenagem a velar. Em alguns casos, é preciso quase que uma cirurgia e dura mais de três horas. Como em qualquer sistema de produção, o corpo passa por etapas, que incluem cuidar dos órgãos internos para conservá-los por horas e da parte externa de figurino e maquiagem – fazem até as unhas. A maior decepção desses trabalhadores é quando a urna precisa ser lacrada, pois a deformação é tanta que não há o que ser feito. “Dou o máximo de mim para melhorar o aspecto e para a família ter a melhor visão da pessoa. Quando não tem jeito, sinto-me frustrado”, revela Edson Chaves, 42, há 23 anos como embalsamador de corpos.
Aprendizado. Por vezes, os “funcionários do trajeto da morte” se envolvem com a vida do morto e sentem o sofrimento alheio. “Teve um caso de uma menina novinha que foi estuprada, e eu vi a notícia antes. O outro foi um moço que era branco, mas estava escuro no caixão, tinha se afogado. Esses me marcaram”, lembra o coveiro Olinto dos Santos. Já da memória do tanatopraxista não sai o choro da mulher que veio ver os corpos de cinco parentes (entre eles, filhos e marido). “A família vinha de viagem e se acidentou. Só ela veio de ônibus mais cedo, porque não tinha vaga no carro”, contou Chaves.
Dentro desse ritual “trabalhístico”, eles aprendem que “só a alma tem valor”, diz Santos. E que não ter medo da morte faz com que as pessoas vivam. “Quando você tem medo, você se protege em casa, não sai, não vive”, constata Carneiro. Há uma década, ele enterrou um filho de 10 anos: “Cantei em cima do túmulo dele a música que ele gostava. Antes de ele morrer, Deus entrou em minha vida e me fez ser um pai melhor e aproveitar meu filho”.
Finados
Flores. No dia de Finados, na próxima quarta-feira, as pessoas vão aos cemitérios homenagear os entes queridos que estão enterrados. Há programações diferentes, como a chuva de pétalas no Parque Renascer e no Bosque da Esperança.
Turismo
Bonfim desvendado por funcionários
Em um dos túmulos com estátuas no cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte, havia uma pilastra quebrada. O fiscal Adilson Carneiro achava que algum vândalo tinha feito o serviço. Há poucas semanas, durante um “citytour” para funcionários no cemitério, com a historiadora Marcelina, ele descobriu que era proposital: simbolizava um pilar da família morto.
Outras curiosidades são desvendadas pela historiadora em dois domingos por mês de visitas guiadas no parque a céu aberto de 360 mil m². “A ideia é permitir que as pessoas pensem sobre a morte e enxerguem outras possibilidades nesse espaço de contemplação, não de tristeza”.
Tem quem vá lá para ler, para beber, para fazer preparos espirituais. “Já vi um pênis de cera com uma galinha morta”, diz Carneiro. Ele revela histórias que só os funcionários sabem, como o código para avisar que tem gente transando entre as sepulturas: “Águia presa na garra”. (JS)
Cremação
Católicos. Em comunicado recente, a Igreja manteve o enterro como primeira opção após a morte, mas especificou regras para conservação dos restos mortais dos cristãos submetidos a cremação. A instituição proíbe a preservação das cinzas em casa e o lançamento em terrenos, ao ar ou em oceano.
Luto
As pequenas perdas ensinam
A gente nunca estará preparado para a própria morte ou para a de alguém próximo. É como uma viagem que, sem data, não permite planejar. Mas tem como lidar de maneira mais natural, aprendendo com as pequenas perdas. Uma mudança de endereço, o distanciamento de familiares e até a perda de um livro implicam luto. Certo dia, algum legislador achou que dois dias eram suficientes para quem perdeu um parente não ir trabalhar e nomeou de “licença-nojo”.
Cada um tem seu tempo, depende da maneira como a pessoa morreu, da história de vida. Outrora, as viúvas usavam preto por um ano, e os homens, um laço da mesma cor no paletó, reivindicando respeito ao período de adaptação. Hoje em dia, “bola pra frente”, que já tem coisa para resolver, critica a psicóloga Júnia Drumond, reiterando a necessidade de se entender cada fase do luto – tristeza, raiva, isolamento – e a vivência daquele que precisa reconstituir “um coração quebrado”.
Com esse olhar e escuta atenta, Júnia coordena o Grupo de Atendimento a Enlutados (GAL) da Sociedade de Tanatologia e Cuidados Paliativos de Minas (Sotamig) há nove anos, por onde já passaram mais de 200 pessoas com dificuldade de elaboração de perdas, inclusive de animais – um luto não reconhecido. “A demanda é grande. A principal queixa é: ‘Estou sentindo tudo isso e não tenho com quem falar’”, diz Júnia. Ela lembra que a sociedade oriental aceita a morte como uma passagem. “No Japão, os familiares preparam os mortos”. (JS)