Todos os dias Marta* sai de casa e faz o mesmo trajeto, cercado pelos casebres simples das ruas da periferia de Tiradentes, no Campo das Vertentes, em Minas Gerais. Pelo caminho, ela cumprimenta os moradores mais antigos da cidade, rostos que se veem frequentemente e que se conhecem bem. Enquanto ela avança, a paisagem se transforma. As casas simples dão lugar a casas coloniais glamourosas, restaurantes, pousadas e toda a beleza de um centro histórico que atrai milhares de turistas. Os rostos passam a ser de turistas desconhecidos para ela.  As imagens que compõem o percurso de Marta e o contexto social por trás delas definem uma Tiradentes dividida em duas: a parte dos turistas e a parte dos moradores que, como mostra uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), perderam o sentimento de pertencimento ao centro histórico da cidade histórica. 

A pesquisa realizada pelos alunos do curso de Turismo mostra que Tiradentes sofreu um processo de gentrificação - quando ocorre a transformação e valorização de uma determinada área urbana, afastando dela os moradores locais, mais antigos e com menor renda. Os universitários foram para as ruas da cidade e ouviram os moradores. “Foi percebido um distanciamento da população local com o centro histórico. Eles vão a essa região muito em função do trabalho e não para o lazer. Essa não é a primeira pesquisa feita nesse sentido, mas o diferencial é que entregamos o diagnóstico para o poder público para que se possa pensar em como mudar essa realidade. Não é um caminho fácil, pois o município precisa do turismo, ao mesmo tempo em que tem que voltar os olhos para a questão do pertencimento da população”, destaca a professora Ana Paula Guimarães, do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências (IGC), que orientou o estudo.  

Marta* é o nome fictício dado a uma moradora que nasceu e cresceu em Tiradentes. Ela prefere não revelar sua identidade por medo de sofrer represálias,  já que trabalha para o turismo em uma pousada. Marta é um exemplo materializado do que a pesquisa identifica. “Eu sinto que o centro histórico é para o turista. A gente tem uma cidade linda, mas que não é totalmente nossa. Eu só vou ao centro para trabalhar e quando eu estou lá, eu me sinto deslocada e como se não pertencesse a aquele espaço. Eu não vou mentir, me sinto um pouco invadida sim. É como se os turistas tivessem chegado e pegado um espaço que é nosso, mas não é culpa deles. E é um sentimento duplo, porque eu também dependo do turismo, é meu ganha pão, mas eu queria que a gente tivesse direito a vivenciar a mesma coisa que o turista”, almeja.  

O sentimento da moradora parece permear os Tiradentinos desde a infância. Nascida na cidade e idealizadora da Mostra de Artes Cênicas Tiradentes em Cena, Aline Garcia, de 43 anos, conta que durante uma oficina de circo para as crianças perguntou o que elas gostariam de ser quando crescessem e uma delas respondeu que queria ser turista. “Ele achou que ser turista fosse uma função. É preciso pensar como essa questão do turismo está sendo trabalhada nas escolas e na comunidade para com que esse pertencimento do Tiradentino de fato exista”, alerta Aline.  

O conterrâneo da realizadora cultural, o professor de Filosofia David Inácio Nascimento, de 38 anos, concorda com ela e destaca que é preciso encontrar um equilíbrio de forma que o turismo não se sobreponha à cultura local. “Essa situação interfere na identidade cultural da cidade, por exemplo, está acontecendo um evento religioso ou uma procissão e tem os bares abertos e o som alto. Dessa forma, o lado comercial começa a sobrepor ao lado cultural da cidade”, considera o professor.  

Marta sente isso na pele, já que a igreja é um dos poucos lugares que ela ainda frequenta no centro de Tiradentes. “Eu, às vezes, assisto missa por lá ou vou em algum casamento. Eu vou, mas não gosto muito. O centro me passa a sensação de um local muito elitizado. Às vezes eu sinto até que estou incomodando os turistas. Não deveria ser assim, já que a cidade é nossa. Eu fico querendo vivenciar isso e a beleza da cidade, mas eu me sinto desconfortável, até por não ter dinheiro para isso”, lamenta.  

Custo de vida no centro histórico “empurrou” população para a periferia 

Além da questão do não pertencimento, outro fator que afasta as pessoas do centro histórico da cidade é o custo de vida no local. Como o espaço ficou muito voltado para os turistas, o preço da alimentação e de atividades de lazer privadas se tornou muito alto para os moradores. “Fazendo uma análise, é possível dizer que, devido à alta demanda e pelas características turísticas do município, as empresas e os estabelecimentos aproveitam para aplicar um valor mais elevado do que o padrão em outras cidades. Essa medida pode ser prejudicial a longo prazo, já que fortalece uma certa segregação de classes sociais, limitando assim que pessoas de classes mais baixas usufruam do espaço”, destaca o texto da pesquisa.

Marta conta que nunca frequentou nenhum estabelecimento comercial do centro da cidade. “É completamente impossível almoçar aqui no centro de Tiradentes. Os preços não cabem no nosso bolso. Se eu vier aqui para me divertir à noite, por exemplo, vou gastar uma grana altíssima para beber e comer, prefiro ficar na região mais periférica. Até para passear durante o dia é complicado. Se eu preciso comprar uma água, o preço é alto demais”, relata. Embora prefira não revelar seu salário, ela diz não passar de R$ 2.000 mensais. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o município tem uma média de 8.160 pessoas. A renda percapita é de R$ 21.071,47 e a média salarial da população é de 1,3 salários mínimos. 

“O aumento do custo de vida no centro de Tiradentes provocou a expulsão dos moradores locais, obrigando-os a migrar para a região periférica. Devido a essa nova concentração de moradores no centro de Tiradentes, vários investimentos passaram a ser feitos, visando principalmente a melhora da estrutura do território. No entanto, os novos moradores das periferias, que antes se encontravam no centro, perdem a oportunidade de usufruir de benefícios que o território passa a possuir. Dentre uma das entrevistas in loco, um morador relatou a baixa quantidade de moradores pertencentes às casas em torno do centro histórico, pois muitos haviam vendido ou alugado o local pelo alto valor imobiliário. Um outro entrevistado também relatou sua experiência com a venda de seu espaço no mesmo local, em que até mesmo se sentia injustiçado pelo valor recebido, o qual acreditava ser injusto se comparado a outras vendas similares de seus vizinhos”, detalha a pesquisa. 

O historiador Luiz Antônio Cruz explica que várias outras cidades do Brasil passaram pelo mesmo processo de Tiradentes, mas o caso da cidade mineira é o mais acentuado. “Nas décadas de 80 e 90, os moradores começam a vender seus imóveis no centro que passa a ser um espaço totalmente turístico. Em Paraty, por exemplo, isso também aconteceu, mas percebemos que a população participa da vida sociocultural da cidade. Em Tiradentes a população está mais afastada. Até mesmo em eventos gratuitos, como a Mostra de Cinema, a gente vê poucos rostos conhecidos de nativos ou tiradentinos de coração”, lamenta. 

Essa especulação imobiliária aliada ao sentimento de não pertencimento dos nativos “divide” Tiradentes. “Ao primeiro olhar eu vejo que são duas tiradentes: a dos tiradentinos e a do turismo. A do turismo é um glamour e é uma coisa fabulosa . Tem serviço de alta qualidade de restaurantes, hotéis e lojas. Você tem uma série de opções. Do outro lado temos uma cidade muito pobre com sérios problemas de saneamento básico, ruas não pavimentadas, problemas com a qualidade da água, frequentemente ficamos sem energia elétrica. Além disso, em chuvas muito volumosas temos o lamaçal que traz prejuízo para muitas famílias que saem perdendo tudo”, destaca. 

O artista plástico João Batista, de 55 anos, mais conhecido como JB, é natural de Belo Horizonte, mas mora na cidade há sete anos. “Eu tenho dois filhos, de 7 e 13 anos. Eu vejo que não tem muitas atividades ou espaços voltados para as crianças e adolescentes. É tudo só para o turista. Isso foi uma coisa que me surpreendeu negativamente quando vim morar aqui. Faltam políticas públicas para os moradores. Começou a ser construída uma quadra perto da minha casa e ficou inacabada. As praças dos bairros ficam abandonadas”, reclama. 

Turismo não é o vilão

Mesmo que tenha empurrado a população para a periferia, os moradores e especialistas concordam que o turismo não é o grande vilão, já que ele é responsável pela fonte de renda do município. Na opinião deles o que falta é o poder público equalizar as demandas dos turismo com as da comunidade para que os moradores voltem a ter essa sensação de pertencimento. 

“É necessário pensar a cidade de uma forma equilibrada para que seja de todos. Às vezes o poder público vendo a cidade funcionar deixa só para o empresariado e turismo e esquece dos moradores”, critica o professor de filosofia. A professora Ana Paula explica que além de trazer renda para a cidade, o turismo também emprega trabalhadores de municípios vizinhos sendo o sustento de várias famílias da região. “Não é um problema que dá para resolver como uma receita de bolo, mas é preciso realizar processos de integração”, destaca. 

Ela ainda traz algumas sugestões que podem fazer com que os moradores retomem a sensação de pertencimento ao centro histórico. “É importante inserir conteúdos nas escolas que destacam a importância de olhar a cidade como sua. Ocupar os espaços da cidade. Voltar a atribuir  a atribuir valor à raiz do município que é a questão cultural e pensar um pouco os limites também da própria atividade turística”, conclui. 

A idealizadora da Mostra de Teatro compartilha da visão da professora. “O turismo é maravilhoso. Ele proporciona uma cadeia produtiva completa. O que a gente precisa é pensar políticas públicas para diminuir esse clima de falta de pertencimento e de exclusão. É preciso pensar a cidade não só com a cabeça econômica", avalia. 

O que diz a prefeitura

Por meio de nota, a prefeitura informou que a atual gestão compreende a problemática e está comprometida a encontrar uma solução, junto com a própria comunidade, para minimizar os impactos da gentrificação. “Até o momento, dentre as ações discutidas e priorizadas pelo Conselho Municipal de Cultura, Patrimônio e Políticas Culturais estão: permanecer e restaurar a Escola Municipal Marília de Dirceu, que acolhe cerca de 60% da demanda de alunos da educação primária, nos turnos manhã e tarde (obra concluída em 2022). Dessa forma, alunos e pais frequentam o Centro. Em uma parceria entre Prefeitura, IPHAN e o Conselho está sendo criado um comitê para utilização e ocupação do Largo das Forras”. 

Além disso, segundo a nota, para fomentar a cultura local foi feita uma parceria com a Câmara Municipal para criar a  Lei Municipal de Incentivo à Cultura, a Lei Dalma Fernandes Ferreira,  que vai disponibilizar R$100 mil para o setor local por meio da seleção de 28 projetos culturais apresentados por artistas, produtores culturais e coletivos do município. São 20 projetos para pessoa física e oito para pessoa jurídica. Foram inscritos 60 projetos que passam por uma comissão.

A reportagem também conversou com o prefeito da cidade, Nilzio Barbosa (MDB), sobre os problemas relacionados ao esgoto e ele disse que a taxa do serviço paga pelos moradores é entregue à Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e que há uma cobrança para que seja feito o tratamento ideal. 

Por nota, a Copasa informou que  "atualmente opera o serviço de coleta de esgoto em Tiradentes. A companhia está negociando com a prefeitura da cidade a autorização para a construção da ETE (Estação de Tratamento de Esgoto).  A Copasa ressalta que já adquiriu duas áreas, uma no município de Tiradentes outra no município de São João Del Rei, ambas aguardam a autorização dos municípios  para a construção da ETE". 

Ainda segundo a companhia um novo projeto está sendo construído exclusivamente para o município de Tiradentes, que ainda está em fase aprovação da prefeitura. Este projeto deverá harmonizar com o patrimônio histórico da cidade. "A Copasa esclarece que a política tarifária da empresa é definida pela Agência Reguladora de Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário do Estado de Minas Gerais (Arsae-MG)", conclui a nota. 

Problemas nos bairros periféricos

Sobre outros problemas nos bairros periféricos, o prefeito relatou que tenta “fazer o melhor”. “Tem uma praça na entrada da cidade que a gestão antiga não cumpriu as obras e está na Justiça. Estamos terceirizando uma empresa para capina e manutenção dos espaços públicos. Temos quadras e projetos de esportes voltados para as crianças e adolescentes. Fizemos as reformas de todas as escolas do município”, destaca. 

O prefeito disse ainda que o turismo é o que mantém a cidade e que por isso ele precisa dedicar investimento para ele. Sobre o problema dos alagamentos nas casas quando chove, ele disse ser uma questão difícil de resolver, já que para realizar obras seria preciso mexer na parte histórica da cidade, mas que o Executivo estuda soluções.