"Foram vários pequenos episódios. Jogaram pastas em cima da minha mesa, mesmo sem ter atividades para serem feitas, e até não me deixaram sair no final do expediente". O relato é de uma jovem LGBTQIA+, vítima de assédio em uma empresa do segmento alimentício, local onde trabalhou por quatro meses, na região metropolitana de Belo Horizonte. A ex-colaboradora, que pediu para não ser identificada, faz parte de um número preocupante: um em cada quatro profissionais LGBTQIA+ já foi assediado no ambiente de trabalho, em Minas Gerais.
O levantamento, feito em todo o país, considerou como assédio o ato de ofender explicitamente alguém por conta de sua característica. Para o mestre em direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e professor na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Rainer Bomfim, os números podem ser ainda maiores. "A primeira questão é que a pessoa tem que saber o que é o assédio e que está passando por essa situação", alerta. Dos mineiros que informaram na pesquisa já terem sido assediados no trabalho, apenas 29% chegaram a relatar o caso nos canais de comunicação disponibilizados pelas empresas.
A vítima contou à reportagem, de forma anônima, que 'as agressões' começaram depois em que ela decidiu revelar a sua orientação sexual. "No começo, achava que estava em um ambiente seguro. Depois, com os episódios acontecendo, percebi que fiz errado", disse. Com os casos cada vez mais recorrentes e sem a coragem para conseguir denunciar, o caminho encontrado por ela foi o pedido de demissão. "Graças a Deus, não", desabafou a vítima quando questionada se ainda continua na empresa.
Como consequência direta da discriminação e do assédio, a pesquisa revelou que o tempo de trabalho nas empresas dos profissionais que se declaram LGBTQIA+ é menor em relação aos demais colaboradores. Estes profissionais ficam aproximadamente 3,07 anos em uma companhia, ao passo que os não LGBTQIA+ permanecem, em média, 4,13 anos em uma mesma empresa. O levantamento revelou também que 47% pessoas LGBTQIA+ têm renda média abaixo de quatro salários mínimos, frente a 36% das pessoas que não fazem parte desse grupo. Diante dos números, o estudo conclui a necessidade de ações que promovam diversidade e inclusão, criando melhores condições para esse grupo manter suas atividades profissionais.
Para Rainer Bomfim, a mudança deste cenário é possível desde que as empresas tenham a diversidade como uma missão e um diferencial no valor de mercado. "A gente tem que pensar em promover o acesso dessas pessoas LGBTQIA+ aos cargos de gestão, aos conselhos administrativos, aos quadros sucessórios. E não tratar elas como diferentes, criando um comitê de diversidade que promove dois eventos ao ano", sugere. O professor ainda destaca a importância das ações realizadas em junho, Mês do Orgulho LGBTQIA+, mas ressalta a necessidade de políticas de continuidade destes atos durante todo o ano. "É importante para que as pessoas consigam se sentir respeitadas e não se sintam descredibilizadas por ser quem elas são", conclui.
Os tipos de assédio
O Brasil registrou cerca de 55 mil denúncias e de processos instaurados por assédio moral e sexual no ambiente do trabalho em 2021. De acordo com o levantamento do Tribunal Superior do Trabalho (TRT), somente no ano passado, foram ajuizados, na Justiça do Trabalho, mais de 52 mil casos relacionados a assédio moral e mais de 3 mil relativos a assédio sexual em todo o país.
Para o mestre em direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e professor na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Rainer Bomfim, são diversos os comportamentos e situações que podem ser traduzidas como assédio, mas que, em semelhança, possuem uma mesma finalidade específica. "São gestos, palavras e olhares que visam causar um dano físico, moral, econômico e até mesmo existencial. Em sua maioria, é motivado por qualquer tipo de discriminação", explica.
O assédio pode ser classificado em dois tipos: moral e sexual. O professor aponta que o assédio moral se configura como um processo de condutas abusivas que, independentemente de intenção, atentem contra a integridade, identidade e dignidade humana do trabalhador. "Dentro desse assédio moral, que geralmente ocorre em relação de poder, é importante dizer que não está limitado a uma hierarquia. Ele também pode ser misto, quando a mesma comete assédio com os subordinados e com colegas que estão em um mesmo nível", exemplifica.
Ainda de acordo com Bomfim, o assédio moral pode se tornar organizacional quando está relacionado a práticas reiteradas de gestão empresarial que, em sua maioria, tem a intenção de aumentar a produtividade dos colaboradores e diminuir o custo do trabalho. "São pressões, constrangimentos, tudo para que os funcionários cumpram suas metas", pontua o professor.
Já o assédio sexual pode ser compreendido por chantagem ou por intimidação. O primeiro ocorre quando a pessoa tenta valer-se da posição de chefia para constranger o colaborador com o objetivo de obter algum favorecimento sexual. O assédio sexual por intimidação é definido pela intimidação ou insistência, podendo ser praticado individualmente ou em grupo, e que não está relacionado diretamente a hierarquia.
Para Rainer Bomfim, quando se analisa os assédios sofridos pela população LGBTQIA+ é preciso considerar as particularidades dos casos, mas entender que dentro da sigla estão questões como identidade de gênero e orientação sexual. "Quando a gente considera essas questões, percebemos que existe um padrão hegemônico de sexualidade e de identidade de gênero, isso é tido como tradicional, como busca ideal", explica o professor que acredita que esse comportamento de discriminação no ambiente de trabalho possa também ser motivado por uma insegurança por parte daqueles que não fazem parte do grupo LGBTQIA+. "A partir do momento em que a gente vive no capitalismo concorrencial, que a gente tem outras pessoas que estão ali qualificadas para assumir seu posto, se você tem uma situação de orientação sexual ou de identidade de gênero que difere do padrão imposto, você está em uma situação mais vulnerável", diz.
Já do lado da vítima, não é tão simples denunciar. "Isso deixa ela (a vítima) insegura. Até ela conseguir falar e ter uma credibilidade maior entre seus pares, tem o medo da não aceitação. E isso faz com que ela conviva com aquela situação ou até mesmo procure outros empregos", afirma.
Sobre a pesquisa
O estudo foi realizado pela empresa de consultoria Santo Caos. Foram ouvidos 19.488 profissionais de todas as faixas etárias entre novembro de 2020 e abril de 2022. Deste total, a população LGBTQIA+ representa 10,4% (2.034 pessoas). A Santo Caos tem realizado, desde 2013, diversos estudos autorais sobre temas como engajamento das pessoas LGBTI+ nas empresas, equidade racial, pessoas com deficiência no mercado de trabalho, entre outros.