Carência

Universidades têm número insuficiente de corpos para estudos, em Minas

UFMG tem o programa de doação mais antigo do Brasil; desde 1999, recebeu 150 cadáveres

Seg, 22/08/22 - 03h00
Corpos são utilizados também para aprimoramento de técnicas cirúrgicas | Foto: Mahmud TURKIA/AFP

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Auxiliar outras vidas mesmo após já ter dado seu último suspiro. Promover os sonhos de jovens estudantes e ajudar a encontrar a cura para diversas doenças até quando já não há força física, um coração batendo no peito e um cérebro coordenando as ações e pensamentos. É esse o destino dos corpos doados para estudos em universidades. 

A atitude nobre, destacada por professores, é de suma importância para a formação na saúde e para o aprofundamento do conhecimento sobre as estruturas humanas e suas complexidades. Porém, a prática ainda não é comum no Brasil, já que muitos a relacionam à morte e não à vida que pode gerar. Por isso, universidades de Minas Gerais e de todo o país têm buscado conscientizar e sensibilizar as pessoas em relação à doação, já que o número de corpos disponíveis para estudos ainda é insuficiente.

Não há, atualmente, dados centralizados sobre quantas doações são feitas anualmente no Brasil. Cada local que os recebe faz seu próprio balanço. Segundo a Sociedade Brasileira de Anatomia, são 36 programas de doação no País. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tem o mais antigo, desde 1999, e foi batizado de “Vida Após a Vida”. 

Professor e coordenador do programa, Kennedy Oliveira afirma que foram recebidos, desde o início do projeto, 150 corpos. O número, porém, não é ideal. O especialista lembra que vários cursos da área da saúde utilizam cadáveres, como medicina, odontologia, fisioterapia e nutrição. Além disso, o ideal seria que os alunos pudessem se dividir em grupos, de 5 ou no máximo 10 pessoas, para manipulá-los nas aulas - só o curso de medicina tem cerca de 160 alunos por semestre.

“O Brasil tem questões muito particulares em relação ao assunto. Há, por exemplo, em geral, bastante resistência para falar acerca da morte. Muitas pessoas têm medo de fazer a doação, apego ao corpo… Além disso, também tem a questão da desinformação”, diz Oliveira.

A questão da desinformação é mesmo um desafio. Muita gente não sabe, mas qualquer pessoa maior de 18 anos pode declarar sua vontade de doar o corpo para estudos. Os processos podem variar um pouco de universidade para universidade, mas são bem semelhantes. No caso da UFMG, por exemplo, é só ir até o local, passar por uma entrevista e receber a carteirinha de doador.

Com o documento em mãos, é preciso avisar a família sobre o desejo, para que ela comunique ao programa quando o doador morrer e, assim, todos os procedimentos sejam feitos. Não há praticamente nenhuma limitação: de jovens a idosos, todos podem doar. Há algumas exceções quando o falecimento ocorre por motivo violento ou por uma doença muito contagiosa, como a Covid-19.

Há também espaço para arrependimento. O artigo 14 da Lei 10,406/ 2002 do Código Civil brasileiro diz que: “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo”. Porém, esse arrependimento não costuma acontecer.

A UFMG, ao longo dos anos, registrou apenas um caso, de uma idosa que, ao contar para a família que era doadora, não recebeu a concordância do netinho. Ela, então, preferiu voltar atrás.

A importância de um corpo real

Outro programa bem-sucedido de doação de corpos é o da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. À frente está Andrea Oxley, também vice-presidente da Sociedade Brasileira de Anatomia. Lançado em 2008, o programa já recebeu cerca de 130 corpos. 

Andrea Oxley explica que, apesar de atualmente existirem recursos tecnológicos, com modelos de corpos em 3D de excelente qualidade, nada substitui os corpos reais. Algumas questões, explica ela, como a textura dos órgãos e as estruturas internas, não se consegue ver utilizando material artificial. Além disso, muitas cirurgias são feitas em cadáveres, inclusive para o treinamento de técnicas especiais.

“Há, também, o desenvolvimento da questão ético-humanística. Os alunos entram jovens na universidade e se confrontam com a morte, têm a percepção da finitude da vida. Eles aprendem a lidar com um corpo que não pode se defender, aprendem a lidar com a vulnerabilidade”, diz ela.

Andrea também lembra como é importante o gesto de quem doa o corpo para a ciência. “A pessoa que doa não recebe nada em troca; doa acreditando na formação dos profissionais, contribuindo para a qualificação”, salienta.

Futuro a ser descoberto

Doar um corpo, muitas vezes, significa ser responsável, mesmo que indiretamente, por descobertas que vão ajudar muitas pessoas no futuro. A Universidade Federal de São João del-Rei iniciou o programa de doação em 2015. De lá para cá, três corpos foram recebidos, inclusive o de um bebê, doado pela família. A criança foi vítima de uma doença rara e, agora, o caso dela poderá ser estudado de maneira mais aprofundada.

“É muito importante a gente ter os corpos. É difícil ter uma representação fidedigna das estruturas do corpo humano com as peças sintéticas que são vendidas; é difícil ter peças que representem a realidade. Além disso, é muito importante o aluno conhecer as variações anatômicas”, afirma Laila Damázio, professora da Universidade Federal de São João del-Rei e do Centro Universitário Presidente Tancredo de Almeida Neves.

Laila também destaca a importância da atitude dos doadores, de “fazer o bem mesmo após a morte”.

Despedida

Não há como saber por quanto tempo um corpo será utilizado para estudos. Segundo o professor e coordenador do programa “Vida Após a Vida”, da UFMG, Kennedy Oliveira, o prazo varia. Aqueles que são submetidos a cirurgias, em geral, são substituídos após 12 ou 13 anos, em média. Os demais costumam ser estudados por um período maior, em torno de 60 anos.

Quando o prazo “chega ao fim”, esses corpos são enterrados para continuarem descansando em paz, após terem feito o bem.

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