Ao mesmo tempo em que as companhias de ônibus perderam metade da demanda de passageiros no país em 20 anos, as empresas de viagens por aplicativos vêm ganhando mais espaço, com cada vez mais motoristas cadastrados. Essa possível transferência de usuários pode colapsar o trânsito no país. Em Belo Horizonte, bastaria que 10% dos quase 1 milhão de passageiros diários migrassem para serviços de motoristas sob demanda para a cidade ter que lidar com até 50,6 km adicionais de engarrafamento por ano, segundo estudo divulgado na última semana pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). É o equivalente a quatro avenidas do Contorno, que tem uma extensão de 11,86 km.

Ainda segundo o órgão, as empresas de coletivos perderam 50,3% dos passageiros, de 1994 a 2017. Além do congestionamento, a possível mudança na forma de locomoção poderia gerar até R$ 1,08 bilhão de custos para Belo Horizonte, considerando acidentes de trânsito e mortes em decorrência do alto fluxo de veículos, doenças pulmonares e outros fatores. Uber e 99, entretanto, questionam o levantamento.

Decrescente

Dados da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte (BHTrans) dão conta de uma redução da ordem de 19,1% no número de passageiros dos ônibus em uma década, passando de 216,9 milhões para 175,48 milhões, numa comparação entre o primeiro semestre de 2009 e o mesmo período deste ano. 

O presidente executivo da NTU, Otávio Cunha, atribui uma parte dessa queda a uma possível perda de passageiros para os motoristas de aplicativos. “O nosso setor vem perdendo demanda já há algum tempo, uma perda marginal a cada ano, que era compensada com o aumento do valor da tarifa, que, por sua vez, afastou mais usuários”, comenta.

Para o presidente executivo da NTU, Otávio Cunha, os preços também justificam a menor demanda nos coletivos. Em 2013, aliás, o aumento tarifário que aconteceria em São Paulo mobilizou uma série de manifestações por todo país. “Essa perda é impossível de recuperar via tarifa, porque ela já está alta. A gente não conseguiu reequilibrar o sistema”, reconhece.

Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2011, demonstra que o aumento nas tarifas de ônibus e um declínio na renda levaram a uma redução de 30% da demanda por serviços de ônibus. E existem outras explicações como “o desemprego e até mesmo os congestionamentos, que tornam as viagens mais demoradas”, afirma Cunha.

Segundo a BHTrans, a menor demanda por coletivos em BH se tornou mais acentuada a partir de 2014. De lá para cá, a redução foi de 22,58%. Isso coincide tanto com a chegada do Uber quanto com a crise econômica. Somente essa empresa de apps avançou de uma base de 500 viagens em agosto de 2017, para 2,6 bilhões em julho deste ano em todo país. Números regionais não são divulgados por eles.

Complementar

As principais empresas de transporte por aplicativo defendem que não existe uma competição entre elas e as empresas de ônibus. Em nota, a Uber diz que “diversas pesquisas e dados de viagens vêm demonstrando que o serviço complementa e incentiva o uso do transporte público por facilitar o acesso às linhas de ônibus ou metrô”. 

A empresa acredita que, ao contrário do que diz o anuário, a presença do serviço tornou as ruas e avenidas mais seguras para pedestres e motoristas. Pesquisa Datafolha feita neste ano corrobora para a afirmativa, indicando que 83% da população da região metropolitana da capital que consome bebida alcoólica passou a usar aplicativos de mobilidade em vez de dirigir.

O mesmo levantamento apurou que 87% dessa população já usou aplicativos como complemento ao transporte público.

Outro argumento a que a Uber recorre diz respeito ao horário em que o serviço é usado. Em Belo Horizonte, a faixa a partir das 20h na sexta-feira é o período com maior número de viagens, “justamente quando o trânsito está menos congestionado e a oferta de transporte público é menor”.

A 99 também sustenta que as viagens são usadas, muitas vezes, visando a “multimodalidade”. Exemplo disso é que 10% das viagens em São Paulo e no Rio de Janeiro começam ou terminam em estações de metrô e trem. A empresa ainda indica que um estudo feito junto com a USP “estimou que 85% dos passageiros são do transporte individual”.

Qualidade do serviço pode ser afetada por menor demanda

“A oferta de viagens é programada conforme a demanda. Se uma diminui, a outra também vai ser reduzida. Assim, o intervalo começa a ficar maior, a qualidade do serviço cai. Levando menos pessoas, o custo aumenta... É uma equação difícil”, avalia o superintendente de transporte público da BHTrans, Sérgio Carvalho. 

Para ele, a exemplo de gestores de todo o mundo, o transporte coletivo deve ser priorizado. Por isso, Carvalho indica projetos que visam melhorar a infraestrutura para transporte público na capital, sem apontar para data de conclusão.

“Temos, em andamento, uma licitação para contratar 80 Km de faixas exclusivas. Temos financiamento previsto do Banco Mundial para a construção do expresso Amazonas. A ideia é criar um corredor na avenida Amazonas, com operação à direita da via. Um outro estudo diz respeito à ampliação das estações do sistema tronco alimentado, na avenida Pedro II, criando uma estação para troncalizar linhas”.

Pesquisador aponta saídas

Embora concorde que há migração de usuários do transporte coletivo para os serviços sob demanda ofertados via aplicativo, o arquiteto e urbanista Roberto Andrés lembra que, antes disso, essa transferência já acontecia. “Muitas pessoas optavam por deixar de usar ônibus e se tornavam proprietárias de automóveis”, indica.

De fato, se entre 1994 e 2017 o volume de passageiros caiu 50,3%, dados da Denatran (2019) revelam que a frota de automóveis aumentou 175% desde o ano 2000, passando de 20 milhões para 55 milhões. Em relação às motocicletas, o acréscimo foi de 570%, indo de 6 milhões para 27 milhões.

Andrés, que estuda o transporte público desde 2011, aponta que a baixa qualidade do serviço e o crescente aumento tarifário são elementos que ajudam a entender o fenômeno.

O pesquisador concorda com a premissa das soluções propostas pelo anuário 2019 da NTU. “Temos que ter subsídio tarifário, temos que ter investimento em infraestrutura que priorize o transporte coletivo”, diz. “Mas, isso não pode ficar na mão dos empresários do setor. É importante que exista transparência e órgãos que controlem o funcionamento dessas políticas”, indica.