“Todas as vezes que me deparo com uma garrafa da Backer em um supermercado, ou onde eu estiver, eu levo um choque”. A fala de Eliana Reis sobre ver os rótulos da marca voltarem ao comércio dá voz às 29 vítimas que foram intoxicadas pela substância dietilenoglicol na cerveja Belorizontina, assim como a seus familiares e amigos. Dez delas nem sequer resistiram, como o marido de Eliana, José Osvaldo Faria, que morreu após mais de 500 dias internado. 

 

Três anos após o caso, a dor precisa ser, mais uma vez, maquiada. Isso porque a decisão judicial diz que parte do lucro da venda da cervejaria deve ser destinada ao pagamento de apoio às vítimas e de suas indenizações.  

 

O acordo entre a Backer, o Ministério Público e as pessoas atingidas garante que parcela do lucro das vendas das cervejas seja reservada para a associação criada pelas vítimas. Esse valor deve cobrir o pagamento de obrigações no acolhimento dessas pessoas, como custos médicos, e as indenizações de cada uma, como foi homologado pelo Juízo da 23ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte. Mas, enquanto isso, quem sofre com a intoxicação até hoje vê o tempo passar marcado pelos gatilhos de assistir àquilo que gerou perda em suas vidas ser novamente brindado e celebrado.  

 

“É um mal, infelizmente, necessário”, continua Eliana. “Ver a cerveja é uma explosão de emoções que passam em um segundo na minha cabeça, como está passando agora, falando sobre isso”, desabafa, com a voz trêmula. Nas prateleiras, já são oito rótulos à venda. Mas as cervejas que levam o nome da marca – Backer Pilsen, Backer Trigo e Backer Pale Ale – são as que mais causam remorso nas vítimas.  

 

Toda a produção da Backer está concentrada na planta industrial da cervejaria, no bairro Olhos D’Água, na região do Barreiro. A marca não divulga o tamanho da fabricação atual, segundo eles, por questões concorrenciais, mas não há nenhum limite judicial para isso. “A retomada da produção cervejeira é um fator decisivo para ampliar a assistência médica e financeira às vítimas”, respondeu a marca para a reportagem.  

 

De acordo com a Backer, ainda não é possível estimar o prazo para pagamento das indenizações. “As variáveis de faturamento impactarão objetivamente o prazo para pagamento. Mas todos os esforços estarão concentrados em liquidar esses passivos o quanto antes”, afirmou.  

 

Para Cristiano Gomes, de 50 anos, professor da UFMG e um dos intoxicados em 2020, a Justiça já está atrasada. “Nós sofremos os efeitos do envenenamento todos os dias, seja no passado ou no presente, seja na Justiça”, conta ele, que, após tomar a Belorizontina, teve dez casos de infecções bacterianas e fúngicas, tendo que ficar internado por meses. Ele ainda precisou de um transplante de rim, o que o preocupa quanto à possibilidade de voltar a precisar de hemodiálise. 

 

“Depender das vendas da Backer não é o que gostaria, mas é o que tenho”, fala Gomes. “Nós batalhamos, agora, para que a Justiça seja correta, e não morosa, a ponto de recebermos anos depois; nossa vida não pode esperar assim”, completa. Mesmo com o impasse, Cristiano não consegue mais tomar sequer um gole das cervejas da Backer, assim como seus familiares. “O trauma ficou, as sequelas ficaram. É complicado”, desabafa.  

 

Três anos após as primeiras intoxicações, que começaram logo depois das comemorações de Ano-Novo de 2020, o valor das indenizações ainda não está fechado. De acordo com a Backer, o processo de mediação com as vítimas completa dois anos e meio, e a primeira fase, de custeio de necessidades de tratamentos de saúde em atendimento clínico e domiciliar, é tida como finalizada. “A cervejaria está em dia com todo o acordado”, afirma em nota, apesar de existirem relatos contrários. 

 

No caso da viúva Eliana, por exemplo, a sua contestação é que, cerca de um mês antes da morte do marido, ela solicitou ajuda para custear um quarto de hospital para José, onde lhe seria oferecida assistência médica em todas as horas do dia. “Eles não deram resposta alguma. Então, hoje eu falo em nome de meu marido”, compartilha.  

 

Em fase de definição dos valores das indenizações, a cervejaria pretende arrematar o processo logo. “A expectativa é de muito em breve ter finalizado os procedimentos de mediação”, alega. Quem também aguarda ansioso pelo fim das negociações e pelo acerto com a Justiça é Luiz Felippe Teles Ribeiro, de 39 anos, engenheiro metalurgista. Luiz é mais um dos intoxicados e chegou a ficar cinco meses internado e 85 dias em coma.  

 

Ainda aprendendo a viver com várias sequelas, como a necessidade de usar aparelhos auditivos, dificuldade de locomoção, paralisia facial e uma função renal abaixo de 50%, tomar cervejas Backer não entra para sua lista nem em pesadelo. “Não me permito nem pensar em tomar qualquer bebida dessa cervejaria que me causou tantos males e jamais indico para qualquer pessoa. Não depois de tudo o que eu passei”, confessa. 

 

O caso do Luiz ainda se assemelha com a dor de Eliana. Ele perdeu o sogro, Paschoal Demartini Filho, de 55 anos, intoxicado pelo dietilenoglicol presente na cerveja. Os dois passaram o Natal de 2019 juntos e dividiram a bebida. “São sequelas não só físicas, mas psicológicas, que divido com a família”, relata. “Após três anos, ainda estamos no aguardo da indenização. Estou vivo e tenho certeza de que a justiça será feita”, continua.  

 

Dá para confiar? 

Antes da tragédia, a Backer era o principal nome da cerveja artesanal em Minas Gerais, tendo, até mesmo, ganhado prêmios internacionais como o World Beer Awards, em Londres. Mas as intoxicações causaram impacto na confiança dos consumidores. E, com a instabilidade da marca, outras cervejarias ganharam o gosto do público no nicho artesanal. 

 

“A Backer deixou um vácuo no mercado. Cervejas dos rótulos como Krug, Laut e Wäls, também mineiras, conseguiram aproveitar para crescer nesse tempo”, explica Marcelo Magnabosco, cervejeiro e professor da Escola Mineira de Sommelieria, em Belo Horizonte. Para ele, não há dúvidas de que a segurança na produção foi estabelecida, mas a marca precisa ir além se quiser convencer os consumidores. “O produto é confiável, com certeza seguiram os procedimentos necessários, mas há alguns pontos que ficaram soltos, na integridade da cervejaria, na reparação com as vítimas”, lembra. 

 

De fato, a Backer só está autorizada a produzir as cervejas novamente por autorização do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que avaliou o seu processo de fabricação. Ainda, a empresa provou ter obtido as autorizações da Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Belo Horizonte, para licença ambiental; da Prefeitura de BH, que expediu o alvará de funcionamento do estabelecimento; e do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, que atestou a segurança da cervejaria. Sem contar com o “moderno laboratório de controle de qualidade” que a empresa afirma ter.  

 

A questão passa, então, a ser decidida por cada consumidor. “Percebo que, no campo da cerveja artesanal, medo não é um grande fator, pelo menos para aqueles que entendem do processo de produção”, conta Magnabosco. “Mas há quem, assim como eu, reflita se é uma cervejaria que vale a pena ser apoiada”, explica.

 

Pelas redes sociais, alguns consumidores se mostram fieis à marca. "Bom ter a cerveja de volta. Só precisa de um bom preço, porque qualidade já tem", comentou um usuário pelo instagram da Backer. "Já bebi demais e quero muito mais", postou outro. 

 

O que diz a Backer 

 

Sobre a contestação de Eliana Reis sobre a solicitação de um quarto de hospital para o marido à cervejaria, à época, a Backer declarou que não prestou ajuda à família para pagamento do tratamento de José porque eles não teriam apresentado os laudos médicos à Justiça para angariar o auxílio.

 

Entretanto, o advogado Guilherme Leroy, representando as famílias das vítimas, declarou que Eliana apresentou os laudos com gastos em uma reunião direta com a Backer ocorrida entre os meses de fevereiro e março de 2020.