Mal acabou de pagar a 12ª prestação dos R$ 2.400 de sua passagem aérea para Roma e a engenheira de software Barbara Aguilar, de 35 anos, já contraiu uma nova dívida, agora de R$ 6.000. Tudo isso para bancar seu sonho de fazer um mochilão na Europa em outubro, que quase foi interrompido pela bomba anunciada no último fim de semana pela 123milhas, empresa mineira que cancelou a emissão de todas as passagens aéreas da linha promo (datas flexíveis), com embarque previsto de setembro a dezembro de 2023. Segundo a companhia, isso representa 7% dos embarques deste ano. Nessa segunda-feira (21), o Ministério da Justiça abriu um processo contra a empresa e o ministro do Turismo, Celso Sabino, anunciou uma série de sanções à agência de viagens online, que também foi notificada pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e até virou alvo da CPI das Pirâmides. 

Em nota oficial, a empresa afirmou que a decisão “deve-se à persistência de fatores econômicos e de mercado adversos, entre eles, a alta pressão da demanda por voos, que mantém elevadas as tarifas mesmo em baixa temporada, e a taxa de juros elevada”. A 123milhas explicou que os valores serão devolvidos em voucher, com com correção monetária de 150% do CDI - acima da inflação e dos juros de mercado.

As reclamações de clientes lesados pela empresa se acumulam e a solução da empresa não foi bem recebida: vouchers, parcelados, em vez de ressarcimento total. Segundo dados da Senacon, de janeiro a 31 de julho deste ano, houve  5.845 reclamações na plataforma. A principal queixa dos clientes é justamente o atraso no reembolso de valores (2.567), seguida pela dificuldade para alterar ou cancelar o serviços (527) e a oferta não cumprida (626). 

Barbara Aguilar conta que a empresa parou de atendê-la até no chatbot e que resolveu viajar em outubro para não perder o cerca de R$ 2.000 já investido em passeios, como o do Coliseu, em Roma, fora o tempo e energia empregados. Até seus anfitriões marcaram férias para recebê-la na Europa. “A política de cancelamento deles não permite nada com menos de 120 dias. Se eu quiser trocar, cancelar ou alterar algo tem que ser nessa janela de prazo, mas eles cancelam com menos de 50 dias e ‘eu que lute’”, indigna-se. 

Viagens de 2024 podem ser afetadas

A professora da rede pública Dayane Priscila Sales, de 27 anos, trabalhou 12 horas por dia, durante meses ‘a fio’, para conseguir juntar dinheiro para fazer sua primeira viagem internacional com o marido. Eles compraram bilhetes aéreos para Londres, com previsão de embarque em janeiro do próximo ano. 

Dayane pagou cerca de R$ 6.400, no Pix, nas passagens para o casal. E, apesar da empresa afirmar que, por ora, haverá o cancelamento apenas das passagens de setembro a dezembro de 2023, clientes como Dayane já estão recebendo ofertas de vouchers. “E quando você entra na página do voucher, a mesma passagem que era R$ 2.000, está R$ 2.500. Os preços de hotéis estão mais altos que no Booking. Querem captar ao máximo o valor do voucher”, reclama. 

A professora reclama que, por ainda não ter sido “oficialmente” lesada pela empresa, já que a viagem está marcada para 2024, ainda não pode acionar a justiça. E acabou ficando numa situação insustentável: não sabe se aguarda na esperança de ter o bilhete emitido no ano que vem e segue o planejamento normal ou se não reserva nada para não perder passeios e hospedagem e ficar com um prejuízo monumental.  "Só de moeda, adquirimos R$ 7 mil já. Por sorte, ainda não fechamos hotel. Ficamos sem saber se reservamos hotel e o passeio que queria muito fazer ao estúdio do Harry Potter, onde o ingresso esgota rapidamente. Eles acabaram com nossa viagem”, diz. 

Não existe passagem para daqui dois anos

“Crônica de uma morte anunciada”, é assim que Alexandre Brandão, vice-presidente da Associação Brasileira de Agências de Viagens de Minas Gerais (Abav-MG), resume a crise com a 123milhas. 

Ele explica que a empresa cresceu num segmento que, na realidade, nem poderia existir como modelo de negócio. “Os regulamentos são claros. As milhas não podem ser ativos; comercializadas. São para você e sua família usarem”, explica. Segundo ele, até então, todo mundo fazia “vista grossa”, mas as companhias aéreas começaram a restringir a emissão de bilhetes por milhas a 15 por ano ou limitar em cinco pessoas “favoritas” o número para que o cliente pudesse emitir bilhetes.

“Isso já restringiu demais a passagem por milhagem e inviabiliza a atividade dessas empresas. Em vez de emitir [bilhetes] com milhas, começaram a comprar passagem. Virou uma bola de neve e terminaram com o ativo”, aposta o vice-presidente da Abav.

Brandão não acredita que o termo “pirâmide financeira” seja o ideal para denominar o modelo de negócio da 123milhas, porque a empresa tem ativo financeiro: um banco com milhões de milhas de clientes. “Diria que é uma gestão temerária de um ativo grande. E a empresa vai ficar com ‘moeda podre na mão’; um cheque sem fundo ”, ressalta. 

Brandão lembra que o consumidor deve sempre desconfiar de descontos para além dos 15%. “Uma passagem para Orlando por R$ 1.400? Claro que não existe. O consumidor vai atrás de um negócio mirabolante”, reclama. 

Ele ressalta ainda que as empresas não podem garantir passagens aéreas com mais de um ano de antecedência, pela própria dinâmica de funcionamento do setor. “Qualquer coisa além, é lote na lua”, brinca. 

A recomendação dele é que o cliente da 123milhas busque imediatamente os órgão de defesa do consumidor.

 

Consumidor pode pedir ressarcimento de gastos

Bhrenda Gagno, de 28 anos, advogada do passageiro aéreo, explica que cada caso deve ser analisado individualmente. “Mas o primeiro passo é registrar queixa no consumidor.gov [plataforma de reclamações do governo]. Quase todos os juízes pedem isso”, considera. 

Segundo ela, quando há um compromisso marcado para os próximos meses, sem possibilidade de adiamento ou alteração da viagem, uma saída é comprar nova passagem, guardar os comprovantes de todos os gastos e pedir a restituição do valor depois na justiça. 

Caso haja interesse no voucher, é preciso ver quantas pessoas compraram o pacote e se todos poderiam utilizar na nova data pretendida. Segundo a advogada, mesmo que o cliente opte por esta modalidade, ele pode ainda buscar ressarcimento de danos na justiça, já que as condições de uso deste voucher estão “obscuras”. 

A médica Margareth Maria Mundim Teixeira, de 66 anos, estava com uma viagem em grupo marcada para a Itália em janeiro de 2024 e gastou cerca de R$ 3.000 nas passagens, que agora estão sob ameaça. A empresa já entrou em contato com os clientes oferecendo a troca dos bilhetes por voucher.  

“Querem dar voucher pra gente, dividir de não sei em quantas vezes, todo picado. Como compramos há mais tempo, este voucher não seria viável. Não conseguiria com ele, mesmo que integral, comprar outra passagem para o nosso destino”, explica. 

Segundo ela, além do prejuízo financeiro, que só de hospedagem em Paris beira 500 euros, tem todo um prejuízo emocional. “Já estávamos com a cabeça nesta viagem".