Risco

Cena de entregador de aplicativo em meio a temporal retrata precarização

Wesley Francisco Muniz, 27, trabalha na plataforma enquanto não consegue emprego com carteira assinada

Sex, 31/01/20 - 03h00

Em meio aos temporais que atingiram Belo Horizonte nas últimas semanas, uma imagem chamou a atenção e viralizou na internet ao retratar, mais do que o caos e a destruição em toda a cidade, um problema social: a precarização do trabalho. A foto de Alexandre Mota, de O TEMPO, mostra um entregador de comida por aplicativo ilhado na enchente que atingiu a avenida Prudente de Morais e adjacências, no bairro Cidade Jardim, na região Centro-Sul da capital. Ontem, a reportagem localizou o homem: Wesley Francisco Muniz, 27, um dos 5,5 milhões de brasileiros cadastrados em aplicativos de entrega e transporte, segundo o Instituto Locomotiva.

Enquanto procura um emprego com carteira assinada, essa é a forma que Wesley encontrou para sustentar a família: trabalhar dez horas por dia, de segunda a segunda, faça sol ou chuva, mesmo que seja muita. Minutos antes da foto ser tirada, Muniz havia sido acionado pelo aplicativo para pegar uma entrega em um restaurante a 200 m dali. “Eu parei no posto (de combustível) para fazer a coleta. No momento em que deixei a moto e fui subir a rua, já começou a encher de água. Quando voltei, a água já tinha tomado conta”, diz Wesley, que não conseguiu sequer pegar a encomenda e ficou ilhado.

No momento do registro, ele tentava encontrar uma rota de fuga. Com a ajuda de moradores de prédios vizinhos, Wesley conseguiu sair do local e, mesmo após o sufoco, continuou a trabalhar e ainda fez duas entregas naquela noite, quando em apenas três horas choveu o equivalente a 56% da média de todo o mês de janeiro. “Eu aceito qualquer entrega, mesmo que longe, porque a situação não está fácil”, confessa.

Segundo especialistas, essa forma de trabalho cresce, associada à baixa remuneração e à falta de direitos. “Chego a tirar de R$ 80 a R$ 100 por dia. Estou conseguindo sustentar a família, mas não é uma coisa fixa, não é carteira assinada. Tem riscos e eu gostaria de arrumar um emprego, mas as oportunidades são muito fechadas. Mandei vários currículos e não obtive sucesso”, conta o entregador, que mora em Contagem, na região metropolitana, com a mulher, que está desempregada, e o filho de 4 anos.

Uma pesquisa realizada pela Fundação Instituto Administração (FIA) no ano passado mostra que a maioria dos entregadores de aplicativos no Brasil são homens com escolaridade média. Oito a cada dez são responsáveis pela principal renda da família.

“Existe uma ideia de versatilidade, praticidade e boa adaptação dos horários de trabalho à vida que a pessoa leva, mas, devido ao fato de os rendimentos serem baixos, torna-se um trabalho para sobrevivência”, diz o economista e professor da UFMG, Mario Rodarte. 

Nesta semana, a Justiça do Trabalho de São Paulo negou um pedido do Ministério Público do Trabalho para que o iFood seja obrigado a reconhecer vínculo trabalhista com entregadores.

O advogado e professor do Ibmec, Flávio Monteiro, diz que, como não há legislação própria para esse tipo de trabalho, e os entregadores não são reconhecidos como empregados pelas empresas ou pela Justiça, eles não têm nenhum dos direitos trabalhistas previstos na Constituição e na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). “É um trabalho muitas vezes desgastante. Para a pessoa conseguir ganhar um dinheiro para sustentar a família tem que trabalhar em jornadas muito longas”, afirma.

Em nota, o iFood informou que atualmente há cerca de 80 mil entregadores ativos na plataforma, “que atuam de forma independente e tem flexibilidade para gerenciar seu próprio tempo”. Em casos de acidentes, eles contam com seguro acidente pessoal. A empresa disse que vem desenvolvendo ações que incentivam boas práticas de segurança por meio de vídeos educativos.

Modalidade não tem jornada máxima nem renda mínima

Especialistas defendem a criação de uma regulação do trabalho de entregadores de aplicativos. É preciso, por exemplo, que sejam estipuladas jornadas máximas de trabalho, remuneração mínima e questões de saúde e segurança dos trabalhadores.

“Essas empresas estão numa tendência de liberalização do mercado, mas, ao mesmo tempo, provocam maior necessidade em relação ao Estado, elevando custos com segurança e seguridade social. Usam aquele discurso de que poderia ser pior, mas pode ser um pouco melhor também”, diz o advogado e professor do Ibmec Flávio Monteiro.

O economista e professor da UFMG Mario Rodarte lembra a teoria de que, em terra de desiguais, a liberdade oprime, e a lei liberta. “A tecnologia é muito legal, confortável e funcional para o usuário, mas não precisa existir com precarização. É necessário um elemento nessa equação, que é a regulação por parte do Estado”, afirma Rodarte.

Veja a resposta do iFood na íntegra:

"O iFood lamenta a situação alarmante da cidade de Belo Horizonte e se solidariza com todas as pessoas atingidas pelas enchentes. A partir da imagem, não é possível afirmar se o entregador está cadastrado no aplicativo e nem se está realizando uma entrega ou mesmo se está em deslocamento para se abrigar da chuva, na condição como tantas outras pessoas mostradas em reportagens dos meios de comunicação brasileiros ou em redes sociais sobre a calamidade pública.

A empresa informa que atualmente há cerca de 80 mil entregadores ativos na plataforma, que atuam de forma independente e tem flexibilidade para gerenciar seu próprio tempo e, inclusive, atuar por diversas plataformas. Em casos de acidentes, todos os entregadores, independentemente do modal utilizado nas entregas, contam com Seguro Acidente Pessoal. Os parceiros estão cobertos em caso de acidentes enquanto estão em entregas e também por um determinado período após a última entrega. 

Com relação às iniciativas voltadas para a segurança dos entregadores independentes, o iFood vêm desenvolvendo ações que incentivam boas práticas por meio de vídeos educativos que abordam desde a importância do uso de equipamentos de segurança, conduzir em período de chuva e até o respeito às leis de trânsito. Entre outras iniciativas está a parceria com o SESI São Paulo, que tem como objetivo impulsionar a capacitação e a formação dos profissionais independentes. O conteúdo será personalizado especialmente para os parceiros de entrega cadastrados no app e seguirá o método de ensino à distância, será dinâmico e interativo, permitindo o acesso à vídeo aulas de qualquer plataforma digital, inclusive pelo celular. A novidade será lançada no início do ano e ao concluir todos os ciclos de aprendizagem, todos os alunos recebem um certificado assinado pelo SESI São Paulo

Além disso, a empresa investe constantemente em tecnologia e outros mecanismos que delimitam o raio de entrega para cada restaurante e identificam o entregador mais próximo. Com isso, as rotas têm, em média, 5km para motociclistas e cerca de 3km para ciclistas. 

Sobre o valor das entregas, vale ressaltar que sua composição leva em consideração diferentes indicadores, como, por exemplo, o tipo de rota percorrida. Há, também, momentos em que existe uma diferença entre oferta e demanda, como em qualquer outro segmento, dentro do modelo econômico atual. Por isso, o montante pode apresentar variações."

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