A crise financeira afeta todas as classes sociais, mas de formas diferentes. Em Belo Horizonte, um censo realizado pela UFMG com dados de 2013 apontava 1.827 pessoas vivendo nas ruas. Em 2017, um estudo baseado na autodeclaração do Cadastro Único do governo federal, usado na concessão de benefícios como o Bolsa Família, contabilizou 4.553 sem-teto na cidade. Hoje, esse número é utilizado para “dimensionar os serviços socioassistenciais para morador em situação de rua”, afirma a Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) em nota. Mesmo tratando-se de pesquisas e métodos diferentes, é um crescimento de 149% em três anos.
Pesquisa do grupo Mercadológica feita para O TEMPO mostra que, na percepção de 52,4% dos entrevistados, em 45 cidades, o número de moradores de rua aumentou nos últimos quatro anos.
Há dois anos, Juliana*, 34, era camareira em um hotel na região central de Belo Horizonte, com carteira assinada. “Junto comigo, outras pessoas foram demitidas para corte de gastos. Sem emprego, não consegui mais pagar aluguel”, conta ela, que busca alguma renda fazendo bicos. “Faço unha, distribuo marmita, lavo roupa para meus colegas, mas mesmo os bicos estão diminuindo por causa da crise”, afirma. Ela morava no aglomerado Morro do Papagaio. Hoje, vive com outras 16 pessoas embaixo de uma marquise no bairro Floresta, na região Leste da capital.
Professor de serviço social da Una, Cristiano Costa de Carvalho relaciona o aumento da população morando nas ruas com a crise financeira. “A situação de rua é um fenômeno multicausal, não é só a crise. Mas, com ela, o fenômeno fica mais agudo”, diz.
Paulo*, 46, vive nas ruas há oito meses. Ele trabalhou como garçom autônomo por oito anos, mas foi esfaqueado em 2017 e não conseguiu mais emprego. “Nunca paguei INSS, não tive acerto nem licença médica. Não tenho como pagar aluguel”, diz. Ele conta que, antes, alugava um apartamento na região central da cidade. “Cheguei a ganhar R$ 4.000 por mês, mas, com o problema de saúde, ninguém me emprega”, lamenta.
Sem endereço, não existe vaga
Juliana* adora ler, tem segundo grau completo, já trabalhou como manicure, cabeleireira e camareira. O fato de não ter um endereço fixo dificulta sua recolocação. “Quando você vai se candidatar e fala que mora na rua, não é chamada. Colocar o endereço do albergue também não ajuda, porque as pessoas já conhecem”, lamenta. “As pessoas associam quem mora na rua a usuário de drogas ou ladrão, não contratam”, relata Paulo*.
André Marinho da Conceição, 46, está em situação de rua desde 2013 e sugere a criação de uma cooperativa. “Viajo o país tentando sair dessa situação de rua. Em Porto Alegre consegui trabalhar como gari por meio de uma cooperativa. Não defendo, porque não tem carteira assinada, mas é uma porta para o trabalho. Aqui não tem essa porta. Tem trabalho, a cidade precisa de varredor de rua, mas as empresas aqui têm muita burocracia para a gente trabalhar. Precisamos de uma empresa ou negócio direcionado à população de rua”, afirma André. “Eles relatam que têm dificuldade de arrumar emprego por causa do endereço e do preconceito das empresas quando estão albergados”, afirma a coordenadora do Instituto de Apoio e Orientação à Pessoa em Situação de Rua (Inaper), Angélica Lugon.
Demanda é maior para quem ajuda
As entidades filantrópicas sentiram o impacto da crise. O Instituto de Apoio e Orientação à Pessoa em Situação de Rua (Inaper), instituição filantrópica no bairro Bonfim, em Belo Horizonte, dobrou o atendimento diário entre 2016 e 2018, passando de 30 para mais de 60 pessoas. “Abríamos todos os dias. Agora, com o aumento de gastos com leite, pão e energia elétrica, passamos para três vezes por semana”, conta a coordenadora do Inaper, Angélica Lugon, 50.
“Aumentamos o contato com outros grupos para atender a demanda e conseguir produtos de higiene”, conta a coordenadora de redes sociais da ONG Banho Solidário, Tayane Portugal, 23.
Doações. Para conhecer melhor o trabalho e fazer doações para o Inaper e o Banho Solidário, as coordenadoras indicam buscar as instituições nas redes sociais Facebook e Instagram.
Serviços públicos crescem, mas ainda são insuficientes
Com o aumento da população de rua, os serviços de atendimento também sofrem o impacto. A Prefeitura de Belo Horizonte oferece atualmente cerca de mil vagas em unidades de acolhimento, sendo que cerca de cem delas foram abertas em junho deste ano. Mesmo assim, os relatos são de precariedade. “Tenho vários problemas de saúde e não posso ter feridas na pele. Nos albergues a gente sai todo mordido por percevejo”, critica Noel Rocha dos Santos, 49. Ele diz que prefere continuar dormindo na rua, mesmo com os riscos.
Há cerca de dez dias, seus pertences, que estavam embaixo do viaduto da Floresta, região Leste da capital, foram queimados. “Estava fazendo um bico na rua Sapucaí quando vi o fogo. Queimaram colchão, roupas, meus documentos para fazer tratamento de saúde. Fiquei só com a roupa do corpo”, relata.
Noel Santos diz que agora conta com a assistência social do município para tirar novos documentos. “Também me deram um cobertor e colchão novos. Não coloco mais no mesmo lugar”, afirma. Os serviços de assistência social tiveram o horário ampliado. Com isso, a capacidade de atendimento aumentou em 20% nos últimos 18 meses, segundo a prefeitura.
“O orçamento ainda é insuficiente para atender os direitos básicos da população em situação de rua. E essa discussão não acontece, mesmo em ano eleitoral. Isso é preocupante”, avalia o professor de serviço social da Una, Cristiano Costa de Carvalho. “É uma população que fica invisível aos olhos da sociedade e não é assistida pelas política públicas. E está entre as mais vulneráveis”, critica Luciano Gomes, professor de sociologia da Faculdade Arnaldo.
*Nomes alterados a pedido dos entrevistados