Em agosto de 1983, Orcíni Gonçalves Ferreira, de 75 anos, abriu seu bar no bairro Cachoeirinha, em Belo Horizonte. Com um nome tão peculiar, não teve jeito: a clientela começou mesmo a chamar o espaço de Bar do Careca. A alcunha pegou e hoje é um dos mais tradicionais botecos da capital mineira. Lugares como este reúnem elementos apontados como os mais autênticos nos bares de BH, segundo a tese de doutorado “Autenticidade e nostalgia na experiência dos consumidores de bares e botecos de Belo Horizonte - capital criativa da gastronomia”, da pesquisadora Geórgia Caetano dos Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A presença garantida de Orcíni em seu bar é uma das características marcantes listadas pelos entrevistados do estudo. Outros elementos apontados foram a presença da comida de estufa, o balcão, a prateleira de cachaças, o garçom “amigo” e a arquitetura antiga.
Geórgia, que é de Manhumirim, na Zona da Mata, conta que há 20 anos BH a recebeu muito bem, por isso, queria estudar algo que contribuísse para o turismo da cidade. Sua pesquisa, da área de administração, pode ser aplicada por gestores para criar estratégias de marketing para atrair a clientela. “Para conhecer a vida social da capital, nada melhor do que os bares. Eles dão o tom da hospitalidade da cidade”, explica.
Na primeira fase da pesquisa, qualitativa, ela entrevistou 17 pessoas, entre chefes de cozinha, consumidores e donos de estabelecimentos, percorrendo os principais bares dos bairros Santa Tereza e Prado, e regiões da Savassi, da Pampulha e da rua Alberto Cintra, no Cidade Nova. Os participantes tinham diferentes perfis e iam de jovens a senhoras de 70 anos, que são frequentadores contumazes de botecos. Um questionário online, com 254 pessoas, também serviu para validar os resultados.
“Para ser um autêntico bar de BH, eles disseram que era preciso ter comida de estufa, principalmente torresmo. Ter cachaças expostas, um balcão para sentar e conversar com atendente, cerveja servida no copo lagoinha, chão surrado e mesas na calçadas”, detalha Geórgia.
Um personagem muito citado pelos amantes dos autênticos bares da cidade são os garçons, que segundo a pesquisadora expressam a boa acolhida mineira. “É um povo que sabe receber, abrir as portas da casa”, observa.
Segundo a pesquisa, bares que transformam demais a arquitetura, muito fechados, que não colocam mesa na rua ou tendem a ter uma pegada gourmet, com influências internacionais, não fazem parte da cultura local. Espetos e sistema de fichas para pagamento, por sua vez, foram os mais citados entre as características que, definitivamente, não são tradicionais de BH. A ausência do dono do bar é outra falta grave quando o assunto é captar a essência da capital mineira.
Público é leal ao seu buteco do coração
Quando tem uma memória boa, o cliente é fiel ao seu bar. Esta foi uma das conclusões da segunda fase da pesquisa de Geórgia. Ela quis entender como as memórias afetivas contribuem para a lealdade do público e a conexão social que existe nestes espaços. “É uma característica forte daqui. As pessoas vão aos bares para lembrar os momentos vividos. Isso perpetua a cultura do boteco”, esclarece a pesquisadora. Ela lembra ainda que os clientes escolhem os lugares onde se conectam com as pessoas que estão lá ou vão à procura deste semelhante para se engajar.
No Bar do Careca, há clientes que o acompanham há décadas. Segundo ele, é um ambiente familiar, sem bêbado perturbando as pessoas, e 90% do público é atraído pelas mais de 30 delícias do cardápio, como dobradinha com feijão branco, truta com castanhas e alcaparra e pé de porco. Tudo passa pela mão dele, inclusive o tempero especial, com base de sal e alho, e variedade de ervas. Há quem até leve uma marmitinha para casa. “O dono do bar inspira confiança no cliente que vem. Se tiver coisa errada, ele vai me chamar e falar ‘sua cerveja está quente hoje e sua carne está salgada’. E eu vou corrigir o erro”, conta Orcíni.
Ele brinca que o bar, quando se olha do lado de fora, tem um aspecto de “copo sujo”, mas quando se entra, é um lar. “Eu dedico toda a minha vida ao bar como se estivesse dedicando à minha casa. O bar que me traz alegria. Às vezes o cliente está em casa, chateado, vem para cá, conversa e sai leve”, declara. Este tipo de entrega fortalece as relações e cria uma identidade coletiva, segundo a tese apresentada por Geórgia.
Nada Contra resgata memória afetiva sobre os butecos
Tem estufa, prateleira de cachaça, baleiro, mesas de ferro e copo Lagoinha, mas o bar é relativamente novo, de 2019. Inspirados em sua memória afetiva, um grupo de amigos criaram o Boteco Nada Contra, no bairro Funcionários, em BH. “O bar veio quase de uma brincadeira. Temos uma produtora, chamada Contra Regra, que fica num barracão atrás de onde hoje é o bar. Na frente, existia um restaurante self service, que fechou. Num dia falamos ‘vamos abrir um bar ali’, caímos na gargalhada e, quando vimos, tínhamos alugado o espaço e contratado pessoas”, lembra Rafael Minoro, um dos sócios.
Ele conta que sempre gostaram muito de se sentar e tomar cerveja 600ml em mesas na calçada. “Quando decidimos como seria o bar, pensamos num boteco de estufa. É uma prática democrática, você olha, aponta o dedo e consegue ver o que está pedindo”, diz. Rafael também ressalta que o balcão foi um elemento indiscutível: “muitas coisas acontecem nele. As pessoas podem ir sozinhas e se sentarem para tomar uma”, destaca.
Uma atração à parte no local é um baleiro de três andares, da década de 1960. Ele foi comprado pela internet, veio do Sul do país e teve que ser buscado no meio da rodovia trazido por um caminhoneiro. Muitos clientes acabam contando as histórias de como iam com os pais às mercearias e bares e acabavam sempre escolhendo um chocolate desses baleiros, resgatando lembranças. “Quando acessa a memória de um ambiente agradável, o cliente passa a se sentir bem. Lembra de coisas que foram boas na vida”, explica Rafael.
E apesar dos elementos que reverenciam o boteco raiz, o Nada contra traz algumas novidades, como uma biblioteca dentro do bar, quadros e música ao vivo. “Não temos a pretensão de ser ipis literis os bares antigos”, explica Rafael, destacando que torce para que mais bares abram e recupere essa cultura, que tem uma estética legal e resgata boas memórias no público 30+.