Um dos países com maior concentração de serviços de streaming, o Brasil vem adiando o debate sobre a regulamentação das atividades dessas plataformas em território nacional. O tema, há anos é classificado como urgente por representantes de diversos setores do audiovisual, chegou a ser discutido durante o governo Dilma Rousseff (PT), mas, a partir de 2016, deixou de ser tratado.

“Enquanto os europeus já implementaram suas regras e os mexicanos começaram a implementar, nós ainda estamos engatinhando”, queixa-se a pesquisadora e produtora de cinema Mariana Mól, que, finalmente, vê ambiente para que o tema volte à baila.

Um sinal concreto da disposição do governo Lula de encarar o problema se deu em setembro do ano passado, quando o Ministério da Cultura divulgou um documento elaborado por um grupo de trabalho, que se reuniu entre julho e agosto, trazendo recomendações para a regulação do setor.

Entre as ponderações destacadas no relatório está a previsão de uma cota de 20% para obras nacionais nos catálogos de cada plataforma. O texto ainda pontua que metade desse conteúdo deve vir de produções independentes. Embora mais modesta, a orientação está alinhada a uma diretriz aprovada pela União Europeia, em 2018, que determina que, nos países-membros, os provedores reservem uma cota de 30% de seu portfólio à produção nacional.

Hoje, sem regulamentação, os títulos brasileiros ocupam apenas 6% dos catálogos da Netflix e do Prime Video, de dois dos principais players deste mercado, conforme dados divulgados pela Agência Nacional do Cinema (Ancine).

O relatório produzido pelo grupo de trabalho também defende a necessidade de um “mecanismo de proeminência”, garantindo a recomendação e exposição visível do conteúdo nacional em espaços de destaque do catálogo das plataformas. Na avaliação do produtor editorial e audiovisual Lourenço Veloso, essa é, de fato, uma preocupação de primeira ordem.

“O nosso principal gargalo hoje é a janela de exibição, que muitas vezes é restritiva, com exibições de produções nacionais em horários impeditivos ou, quando veiculados na TV, reféns de contratos que limitam o seu alcance”, critica.

Outra medida destacada no documento, que também é elogiada tanto por Mariana quanto por Veloso, é a cobrança da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), um tributo que incide sobre a exploração comercial de obras audiovisuais, mas que atualmente não incide sobre a operação dos serviços de streaming.

Propostas tramitam no Congresso

A disposição do governo em discutir propostas de regulamentação do setor parece vir surtindo efeito. Em novembro do ano passado, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou uma proposta nesse sentido, o PL 2331/2022, que destaca a cobrança da Condecine das plataformas.

O texto, que segue para a Câmara, prevê tributo de até 3% da receita bruta das plataformas, que poderá ser abatido em 60%. Ele também estabelece uma cota de catálogo para garantir a presença de conteúdos brasileiros nas plataformas, com um aumento progressivo até 10%.

Outro projeto que versa sobre o mesmo tema também tramita na Câmara. Trata-se do PL 8889/2017, que também prevê a incidência da cobrança do tributo e a instituição de cotas para produções nacionais.

Empresas participam das discussões

Sobre como encaram o debate sobre a regulamentação e a introdução de cotas para produtos nacionais, Netflix, Prime Video e Disney+ não responderam às perguntas enviadas pela reportagem de O TEMPO. Por sua vez, a Globo indica que contribui na construção das propostas em discussão no Congresso, por meio das entidades associativas setoriais, “apresentando visões que permitam o desenvolvimento da indústria nacional e uma regulação que viabilize as ofertas em um ambiente em que o mercado de atenção é cada vez mais competitivo”.

“É preciso enxergar que o streaming está inserido em um ambiente mais amplo, em que gigantes de tecnologia mundiais operam com serviços de compartilhamento de vídeos, plataformas de vídeos curtos e redes sociais. Na questão da concorrência, é importante que sejam consideradas assimetrias regulatórias com players nacionais, que operam sob uma regulação mais rígida”, sinaliza a empresa.

Quanto à reserva de espaço para produções brasileiras, a Globo assegura já cumprir tal pré-requisito por ser “uma dos maiores incentivadoras e financiadoras de produções nacionais, seja para televisão aberta, paga, cinema ou streaming no país”. “Somos uma empresa brasileira, comprometida com o desenvolvimento do país. Entendemos que qualquer política deve ser calibrada com equilíbrio e baseada em critérios técnicos e na realidade do mercado”, aponta, detalhando trabalhar atualmente com mais de 90 produtoras parceiras, de todos os tamanhos e regiões do país.

“Como maior empresa de mídia do Brasil, temos um compromisso inegociável com a cultura e com o desenvolvimento econômico do país”, complementa.

Sobre sua própria plataforma de streaming, a empresa diz que, hoje, “o Globoplay é o grande hub de conteúdo digital da Globo, oferecendo conteúdo original (que é produzido especialmente para a plataforma), agregando o conteúdo de alta qualidade de todos os canais lineares da empresa, além de conteúdos de parceiros, que podem estar no portfólio do Globoplay ou empacotados em ofertas conjuntas”.