José Saramago (1922-2010) esteve em Belo Horizonte um ano antes e um ano depois de receber o Prêmio Nobel de Literatura. Na primeira visita, em 1997, embora já fosse consagrado, o escritor português encontrou pequenas plateias. Na segunda, em 1999, embalado pela honraria, fez sua estreia no Palácio das Artes. E se surpreendeu ao ser recebido em um Grande Teatro lotado. Responsável pelas visitas do autor à capital mineira e criador do Sempre um Papo, Afonso Borges recorda que, na ocasião, pregou uma peça em Saramago. 

“Falei com ele seria uma coisa pequena, para 200 pessoas, em um teatro de bolso. Ele murchou, falou que era pouco”, lembra Borges. Ao chegar ao local, entraram pelos bastidores, com a cortina fechada. “Ele olhou o pé-direito e veio tirar satisfação: ‘Aqui não é um lugar de 200 pessoas, aqui se toca ópera’. Respondi que realmente, era maior, caberiam umas 600 pessoas. Ele ficou mais satisfeito”, recorda. Quando foi chamado ao palco, Saramago deu um passo e paralisou diante da lotação máxima, de cerca de 1.700 pessoas. “A plateia subiu que nem uma mola, todo mundo se levantou para aplaudi-lo. Foi uma recepção estrondosa, e ele não se movia. Tive que levantar para buscá-lo. Enquanto caminhávamos, ele pegou no meu braço e me falou: ‘É a primeira vez que eu sinto o vento das palmas’”.

Em tempos de pandemia e bate-papos online, o vento das palmas não é mais possível. Ainda assim, para lembrar essa e outras histórias – além do legado do escritor –, o Sempre um Papo terá uma edição especial hoje, dia que se completam dez anos da morte de Saramago. Borges subirá ao palco digital com Pilar del Río, presidente da Fundação José Saramago e viúva do escritor, e eles serão acompanhados de  Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, e de Carlos Reis, professor da Universidade de Coimbra. O encontro começa às 18h, no canal do YouTube e na página do Facebook do Sempre um Papo. 

Pilar, inclusive, se lembra bem da visita em 1999. “Foi um momento magnífico. José Saramago chegou muito cansado a Belo Horizonte. Cansado das entrevistas, dos encontros com amigos e viagens, mas encontrou um auditório imenso e muito atento, e nesse momento recuperou todas as forças. Foi mágico”, diz. “Estivemos várias vezes em BH, e sempre os encontros com amigos e os atos públicos foram marcantes para nós”, completa. 

Ela também destaca que, nos dez anos sem Saramago, o legado do autor de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” se fortaleceu. “Isso é o maravilhoso da atividade criadora: ninguém tira o lugar do outro, cada um tem o seu espaço próprio. E o de Saramago é sólido, procuramo-lo para encontrar-nos com a grande literatura e também pelo consolo humano que nos traz: é uma pessoa como nós, que nos ajuda a entender a situação do mundo e os nossos medos”, afirma. 

Pandemia
Em “Ensaio sobre a Cegueira”, Saramago detalha o colapso da sociedade depois que uma doença misteriosa se espalha pelo mundo e deixa todos cegos. O livro de 1995 voltou a ser amplamente comentado após a epidemia do novo coronavírus, que forçou medidas restritivas, como o isolamento social. 

Na avaliação de Pilar del Río, porém, a obra não é premonitória do atual momento. Ela rejeita o rótulo de “profeta” e afirma que Saramago era, na verdade, um “intelectual, uma pessoa que pensa”. “Ele escrevia a partir de grandes ideias, como, por exemplo: o que aconteceria se ficássemos cegos. E em seguida pensa: mas se já estamos todos cegos, cegos que vendo não veem”, afirma. “Ao fazer esse exercício, ele via o estado do mundo e descreveu isso que demos por chamar ‘distopia’. A chegada do novo coronavírus nos fez perceber que a realidade pode superar a ficção. A verdade é que a leitura desse livro nos ajuda a entender de que material estamos feitos e entender também a necessidade de sermos solidários e generosos”, completa. 

Celebrações
Além da edição especial do Sempre um Papo, outras ações vão marcar os dez anos da morte de José Saramago. A fundação que leva o nome do escritor vai transmitir online uma leitura do último romance que ele estava escrevendo, “Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas”. A sessão será às 14h30 (horário de Brasília), e o bilhete virtual custa 3 euros

Já o Cardume, um canal de streaming dedicado ao cinema brasileiro, vai exibir o documentário “Um Humanista por Acaso Escritor”, sobre as reflexões propostas por José Saramago, às 19h, no seu canal no YouTube. Na sequência, haverá debate com o diretor do filme, Leandro Lopes, e convidados, como o diretor de comunicação da Fundação José Saramago, Ricardo Viel, e o editor da “Revista de Estudos Saramaguianos”, Pedro Fernandes.