Na infância em Irará, em meados dos anos 40, Tom Zé costumava ajudar na loja de tecidos que seu pai tinha na pequena cidade do sertão da Bahia. Os principais clientes eram homens da roça. Atrás do balcão, os olhos do menino brilhavam ao ouvir as histórias (e estórias) dos sertanejos que por ali passavam e, muitas vezes, pegavam uma cadeira para tirar um intervalo na sombra e descansar dos longos trajetos que percorriam. Anos mais tarde, Tom Zé teve uma iluminação.
No silêncio absoluto de seu quarto, como se a calmaria fosse necessária para entender aquele encontro, começou a ler a segunda parte de “Os Sertões”, livro-reportagem de Euclides da Cunha sobre a Guerra de Canudos, conflito que explodiu no interior baiano do início do século passado.
Quando desconfiou que Euclides da Cunha falava sobre o sertanejo, sobre o que ele via na loja, sobre o povo da roça – e também sobre aquele adolescente prestes a concluir o ensino médio –, Tom Zé começou a tremer. “Pensei que a gente não existia no planeta. Quando me convenci (que existia), estava chorando no quarto. Naquele tempo, chorar não dava audiência, os pais batiam na gente porque achavam que estávamos ficando louco”, ele recorda.
A descoberta o levou de volta à infância, aos casos que escutara, à sabedoria da roça, às histórias contadas pelo homens da pele marcada pelo sol. “O sertanejo age dentro do planeta como se fosse um cientista. Conversa sobre tudo, analisa tudo. Tudo que acontece no planeta faz parte da cultura dele”, diz Tom Zé. E os relatos, verdadeiros contos, que ouviu atrás do balcão também definiram muito do que ele faria pelo resto da vida: música – ou contar história em forma de canção: “Conservo muito daquele menino de Irará, passei a dar uma importância imensa ao que aprendi na loja. Peguei o método, o traquejo, a maneira de triscar a língua, os assuntos que ouvi na infância e quis fazer isso em música”.
A palavra, seja cantada, seja escrita, sempre o encantou. A poesia concreta daquelas esquinas o pegou de jeito quando chegou em São Paulo, no fim dos anos 60, depois de estudar música por um par de anos em Salvador, a mesma Salvador de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, seus companheiros num certo momento. Na capital baiana, Tom Zé deu aulas de violão (e juntou um bom dinheiro) para meninos judeus ricos – mas ao magrelo pré-hippie Moraes Moreira os ensinamentos eram de graça.
Ele afirma que acabou aprendendo mais com o futuro Novo Baiano que Moraes com seu professor. Nos corredores da Universidade Federal da Bahia, foi “jornalistar”, como diz com orgulho: escreveu para diversas publicações da faculdade e fazia contatos com a imprensa local. “A palavra é a maior diversão do homem. Hoje, o homem é analfabeto”, comenta.
Artesão
A palavra, no fim das contas, é o objeto de Tom Zé, que pega o rock, a bossa, o forró, o samba, o suingue, a cantiga e tudo mais que houver para musicar seus versos num som indefinível, peculiar e extremamente original. “Meta sua grandeza no banco da esquina/ Vá tomar no verbo, seu filho da letra/ Meta sua usura na multinacional/ Vá tomar na virgem, seu filho da cruz (...) Pegue e junte tudo, passe brilhantina/ Enfie, soque, meta no tanque de gasolina”, diz a divertidíssima “Politicar”, do fim dos anos 90.
O que Tom Zé faz é jornalismo cantado e falado, como ele gosta de dizer. De tanto ouvir histórias no balcão da loja de seu pai, soube o que é ser cronista desde cedo, muito antes de se tornar figura fundamental da Tropicália, movimento que abriu a cabeça da música popular brasileira. “O Caetano começou a falar agora que eu era tropicalista antes dele e de Gil. Sempre fiz música de uma maneira completamente diferente”, diz.
Artesão de centenas de canções, Tom Zé gravou mais de 20 álbuns desde o interminável 1968. Nos anos 70, destaque para “Todos Os Olhos” e “Estudando O Samba”. Embora tenha lançado um álbum na década de 80 – “Nave Maria”, em 1984 –, o compositor passou por um período meio afastado da música até ser descoberto por David Byrne, maravilhado pela obra do baiano, no fim dos 80. Se não fosse o fundador do Talking Heads, diz Tom Zé, tudo seria diferente em sua vida. Da década de 90 em diante, ele segue firme com seu experimentalismo sem preconceitos e a sequência de trabalhos lançados de 2000 pra cá é admirável.
Quarentena
Tom Zé atende o telefone na manhã de uns dias atrás e interrompe os versos de “Senhor Cidadão” que tocavam na linha de espera. É no seu apartamento na capital paulista, no bairro de Perdizes, que o compositor passa a quarentena. Se antes já saía pouco, agora a reclusão é total. “Eu já vivo dentro de casa, pra mim mudou muito pouco. Sou um quarentenista, vivo estudando, compondo. Acordo às 4h, tomo um café, durmo mais um pouquinho. Às 5h, já estou trabalhando”, conta.
Tom Zé transformou seu apartamento em um palco. O baiano, que completa 84 anos em outubro, tem feito várias lives durante a pandemia. Ele leva a sério, quer fazer com que cada apresentação ao lado do parceiro, produtor e guitarrista Daniel Maia seja diferente. Tudo isso dá um trabalho danado, uma produção que envolve ensaios e a organização de um repertório imenso: “A gente trabalha mais que nos shows”.
O tom irreverente e performático é o mesmo dos palcos. Tom Zé pula, baila, se desequilibra, quase deixa cair o pedestal; erra a letra, veste o terno com calça de pijama, dá risada, senta no sofá e tira o paletó. “Vida de porra, my boy!”, canta, entusiasmado. “Tem sido uma alegria grande por causa da repercussão, recebo muitas mensagens. Tocar é sempre uma coisa muito prazerosa”.
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Além da música, Tom Zé passa os dias a estudar sobre economia e desigualdade social. A diminuição da diferença entre ricos e pobres é o tema pelo qual ele mais se interessa no momento. “É impossível um país progredir com essa desigualdade. No Brasil, os índios foram destruídos. Depois e até hoje, a segregação é com negros e pobres”, analisa. Tom Zé fala muito, e sobre tudo: sertanejo que é, agindo como um cientista pensando sobre o mundo.
Cinquenta anos de "Tom Zé"
Em 2020, Tom Zé comemora as cinco décadas do lançamento de seu segundo álbum. “Tom Zé” foi reeditado em formato de LP e lançado em março. O disco traz parcerias com duas das bandas mais importantes da música brasileira: os Novos Baianos, que aparecem em “Jeitinho Dela”, e os Mutantes, que também assinam a letra de “Qualquer Bobagem”, canção regravada em 1995 pelo Pato Fu em uma versão pop e divertida que subverte o tom brega setentista - no bom sentido - da original.
A verve irreverente e o jogo de palavras aparecem nas ótimas “Escolinha de Robô”, “Jimmy, Renda-se” e “A Gravata, em que ele usa o adereço como metáfora do aprisionamento e conformismo social. “Ela é a forca portátil, mais fácil de manejar/ Moderna, bem colorida, para a vítima se alegrar/ É um processo freudiano para a autopunição/ Com o laço no pescoço e a fé no coração”.
“É um disco bem importante. ‘Jimmy, Renda-se’ rodou o mundo, foi trilha de filme”, diz o baiano. Tom Zé se refere a “O Agente da U.N.C.L.E.”, dirigido por Guy Ritchie e lançado em 2015. “Quando vejo os discos que fiz antigamente, fico até admirado: ‘como fiz isso?’”, diz o compositor. “Tom Zé”, que pode ser ouvido na íntegra no perfil do baiano no Spotify, vale a reedição tanto pela efeméride quanto por registrar um artista no florescer de sua intensa criatividade.