As manifestações a favor do retorno dos militares ao poder no Brasil realizadas nos últimos anos deixaram parte da sociedade com uma sensação de espanto e trouxeram à tona uma indagação incômoda: até que ponto os brasileiros compreendem o que significou a ditadura? Os abusos de poder nesse período, como a censura, as perseguições, as torturas e outras formas de violência, que desencadearam mortes e desaparecimentos, começaram a ser relativizados por meio de um discurso ignoto e nostálgico.
Diante desses acontecimentos, o diretor e dramaturgo Luiz Paixão, que estuda o tema há anos e atualmente segue com o assunto em sua pesquisa no doutorado, revisitou as histórias de resistência durante o regime militar. E desse processo surgiu o espetáculo “68”, que estreia hoje e permanece em cartaz até domingo, no Teatro Marília. A peça, segundo ele, abarca essas questões a partir do olhar para a desagregação das famílias, impactadas pelas consequências da ditadura.
“Logo após o golpe militar de 1964, diversos grupos familiares, inclusive os que apoiaram a ditadura, ficavam destroçados quando algum membro era preso ou assassinado. A violência não afeta apenas a pessoa que a sofre, ela se alastra”, comenta Paixão. Esses conflitos, acrescenta ele, são representados por seis atores que, por sua vez, dão vida a muitos personagens.
“O espetáculo não é fechado em uma única história, mas em flashes de diversos momentos, muitos deles familiares. Por exemplo, tem um filho que adere à luta armada e discute com a mãe; tem o pai que está desaparecido porque luta em prol dos direitos dos operários; temos a história de um professor que acaba sendo demitido; e de uma filha que cobra do pai explicações por ele ser médico e fazer parte do aparelho de tortura, assinando atestados de óbitos. Enfim, há uma série de circunstâncias e situações”, detalha Paixão.
Em comum, todos esses conflitos conectam-se a uma realidade externa, marcada pela ameaça constante da opressão. O que, observa o diretor, instaura uma espécie de paranoia generalizada. “Nós vemos que o discurso da ditadura é imposto de maneira totalmente cruel sobre as pessoas, que passam a repetir opiniões que não são delas. Elas são condicionadas e acabam repetindo algumas falas que encobrem os fatos, como a defesa da pátria, a luta contra o comunismo”, diz Paixão.
Há no espetáculo referências diretas às décadas de 60 e 70, como aponta o próprio nome “68”, mas o diretor observa que muitos ecos desse passado estão evidentes hoje. Dessa forma, a montagem, a seu ver, visa levar o espectador a refletir sobre o momento atual e de que forma o autoritarismo vigora de múltiplas maneiras, muitas vezes autorizando as práticas de violência.
“Nós temos uma ministra que considera que a mulher é um ser inferior e deve ser submissa ao homem. Então, isso acaba legitimando o machismo, que se manifesta de várias formas. Nós temos um governo que está distorcendo e quer apagar a palavra ‘ditadura’ dos livros de história. Além disso, demonstra que a educação não é algo relevante, cortando investimentos e as bolsas necessárias para o desenvolvimento das pesquisas nas universidades. Ou seja, estão criando um discurso muito próximo do que vivemos no passado”, completa Paixão.
Ele chama atenção até mesmo para alguns slogans que aproximam as manifestações nas ruas mais recentes daquelas de décadas atrás. “As pessoas de hoje gritaram: ‘A minha bandeira jamais será vermelha’. E as de antes diziam: ‘A minha bandeira é o verde e o amarelo sem foice e sem martelo’. No fundo é a mesma coisa, há um mesmo princípio que as orientam”, sublinha.
Inspiração
Para contar essas histórias, Paixão se valeu da estética brechtiana, que ele ressalta proporcionar um afastamento histórico e espacial, mas possibilitando um olhar crítico para os dias de hoje. “Nós propomos uma discussão sobre a atual realidade brasileira e buscamos discutir como vários aspectos ligados à ditadura estão sendo reorganizados dentro da nossa política atual”, conclui o diretor da montagem.
“68”: Hoje e amanhã, às 20h; dom., às 19h, no Teatro Marília (av. Prof. Alfredo Balena, 586, Santa Efigênia). Ingressos: R$ 44 (inteira) e R$ 22 (meia).