Cultura Queer

A diversidade toma conta da cidade  

Através do deslocamento cultural, eventos confrontam a homofobia e a transfobia

Por lucas buzatti
Publicado em 18 de outubro de 2015 | 04:00
 
 
Rafael Lucas Bacelar e Victor Pedrosa, integrantes da Toda Deseo, na Gaymada MARIELA GUIMARAES / O TEMPO

É dia de Praia da Estação. O sol forte estorrica o cimento da praça enquanto alguns se refrescam na água das fontes, finalmente religadas pela administração municipal, após três anos de cobranças. À frente do Museu de Artes e Ofícios, tendas acolhem o público que aguarda ansiosamente pelo início de mais uma edição do Campeonato InterDrag de Gaymada – um dos eventos que ganharam luz em 2015 ao propor o deslocamento do queer para outros circuitos culturais de Belo Horizonte. Enquanto jogadores dos times TransFavela e Hoje Acordei Perfeita se preparam para a primeira partida do dia, a juíza e as cheerleaders (integrantes do coletivo Toda Deseo, que organiza o evento) animam os espectadores e explicam as regras.

“Não pode invadir o campo, ninguém é carta branca e se a bola bateu em você e caiu no chão é uma gaymada. E o mais importante: eu posso mudar todas as regras a qualquer momento”, brinca a juíza, encarnada no ator, pesquisador e bailarino Rafael Lucas Bacelar. Ele explica um pouco da história do evento, que chegou em sua terceira edição no último dia 12. “Nesses dois anos em que a Toda Deseo existe, entendemos a necessidade de deslocar as pessoas da noite, travestis, drag queens e gays muito afeminados, para o lugar da tarde. Então, revisitando nossas histórias como mulheres e gays, vimos que todos tinham em comum a coisa da queimada na escola. E pensamos em reinventar a brincadeira, agora adultos”, sublinha, revelando que o coletivo atualmente busca recursos para realizar uma edição nacional do campeonato.

Para Bacelar, a Gaymada se assemelha ao teatro de arena e ao teatro de estádio, e possibilita ao jogador vivenciar um espaço de diversidade. “Brincar lida com três liberdades, que são de criação, de espaço e de tempo. E a Gaymada é um espaço onde isso pode acontecer”, pontua. “Você não precisa expor sua orientação sexual para experimentar a brincadeira. É um lugar do queer, do amor, da diversão. É experimentar a liberdade como forma de criação artística”, reflete, destacando que outros movimentos socioculturais da cidade têm absorvido a cultura queer, como é o caso do Bloco da Bicicletinha, pedalada festiva que recentemente realizou uma edição dedicada às drags.

O artista lembra, ainda, que os outros projetos da Toda Deseo transitam nesses mesmos lugares. “Somos um coletivo que dedica o tema de suas criações e debates no teatro às pessoas LGBT, principalmente às travestis e transexuais. Realizamos o ‘No Soy Un Maricón’, que é uma festa encenada, onde essas pessoas são as protagonistas, e o ‘Corpos Que Não Importam’, performance que trata, principalmente, das ideologias de gênero. A Gaymada é nosso terceiro projeto”, explica Rafael Lucas Bacelar.

A questão da representatividade das trans e travestis também é ressaltada com veemência pelo artista, que fala sobre a diferença entre os termos. “Definir o que é trans e o que é travesti é um grande desafio, porque diz de uma autoidentificação. A travesti, de alguma forma, afirma uma identidade como mulher, mas sem abdicar do sexo, como estratégia política. Já a trans se autodenomina assim exatamente pela cirurgia, por causa desse lugar da transformação completa”, assinala. “A drag queen não tem nada ver com isso. Não é uma identidade de gênero. É uma personagem, um palhaço. É a criação de uma estrutura simbólica e artística onde você estabelece jogos de criação, como a dublagem e o canto”.

“Nós, do Toda Deseo, somos todos artistas, então temos privilégios de espaço e de fala no que fazemos. Talvez por isso tenhamos tanta aceitação”, continua Bacelar. “Podemos, sim, ser assimilados às drag queens, mas não gostamos de nos rotular, para que nosso trabalho artístico não fique preso. Passamos por esse lugar de performance, mas, por trabalharmos pelas trans e travestis, se falamos por elas ou nos portamos como elas o tempo inteiro, estamos deslegitimando o momento em que eu tiro a roupa de mulher e a Cristal continua a vida dela”, crava.

Bacelar fala de Cristal Lopez, a “pérola negra” da Toda Deseo. Mulher trans, performer e ativista que leva o debate das identidades de gênero para diversos circuitos culturais de BH. “Aos 12 anos, comecei a ter atração por homens e, ao me olhar, sempre via dois corpos ali. Até o dia em que eu falei: ‘Aquela mulher no espelho sou eu’”, relembra. “Essa mulher, a Cristal, precisava sair, ganhar vida. Então, com 15 anos, comecei a tomar hormônios, joguei todas as minhas roupas masculinas fora e mudei a minha vida”. Cristal afirma que em lugares como o Gaymada sente-se aceita e acolhida. “Quando isso acaba é que vem o peso do mundo real. Às vezes sinto medo, mas ninguém vai me tirar o prazer de circular pela minha cidade”, pontua, exaltando a evolução do debate sobre gêneros no Brasil. “Na minha época de transição, em 1990, não se falava em mulher trans, em nome social, nada disso. Foi tudo na cara e na coragem. Quisera eu que já existisse tanto debate nesse tempo, as coisas teriam sido bem mais fáceis”, reflete.

Integrante da Banda Viada, outra iniciativa de deslocamento da cultura queer, Marcelo Veronez defende, antes de tudo, o direito à cidade. “As pessoas devem ser aquilo que são na rua, e não escondidas dentro do gueto, de um boteco, de uma boate ou de lugar próprio para a montação. Não há porquê viver na clandestinidade por conta da opinião do outro. A cidade é de todo mundo, a rua é o nosso quintal”, enfatiza. “A Lorelay Fox (ícone drag queen da atualidade) diz uma coisa linda: ‘Ser feminino é ser revolucionário’. Estamos envoltos por machismo há séculos, e ele nos coloca em discussões medievais. Então, independente da sua orientação sexual, seja feminino. Porque isso te liberta para existir junto ao outro sem julgamentos, sem preconceitos”.



Vogue. Outra forte expressão queer em Belo Horizonte é o Duelo de Vogue, que reinventa o movimento de poses e danças surgido nos Estados Unidos, nos anos 80. “Vogue é uma possibilidade, para qualquer um que se sinta livre, de se expressar do jeito que quiser. O julgamento não é sobre quem é melhor , porque isso tudo é relativo. É sobre quem se expressa com mais atitude. Qual atitude? Todas que sejam 'transviadas', deslocadas do nosso padrão social sobre o que é ser homem ou que é ser mulher”, explica Guilherme Morais, organizador da festa Dengue, onde acontece o duelo. “Não estamos falando apenas da pose, mas sobre como a pessoa molda seu corpo, suas ideias, sua expressão e seu discurso”, completa, relevando que uma parceria inédita entre o Duelo de Vogue e o Duelo de MCs vai render um evento conjunto durante a programação do Festival Internacional de Dança (FID) de 2015.

Guilherme Morais pontua, ainda, que iniciativas como o Duelo de Vogue possibilitam transitar por entre diferentes padrões de gênero e comportamento. “É importante desestabilizar as caixinhas de gênero. Os gays são múltiplos, assim como os heteros, as trans e as lésbicas. Cabe a cada indivíduo descobrir sua expressão e lutar por essa liberdade de se reinventar”, crava.

Programe-se

Festa Dengue – Duelo de Vogue edição Dark
No próximo sábado, às 23h, no Matriz Cultural (rua dos Guajajaras, 1.353, Barro Preto). A entrada custa R$ 25.

Festa Absurda 6 anos – Com Bonde do Rolê e Dolly Piercing
Dia 14 de novembro, às 22h, no Mercado das Borboletas (av. Olegário Maciel, 742, centro). Os ingressos custam R$ 30