“Anomalisa”

Brilho eterno de uma voz anômala 

Indicada ao Oscar, animação foi feita graças a financiamento coletivo

Por Daniel Oliveira
Publicado em 28 de janeiro de 2016 | 04:00
 
 
Recursos. Animação usa diversas possibilidades técnicas para extrapolar as ideias do roteirista Charlie Kaufman Photo Credit: Paramount Pictures

“Anomalisa”, que estreia nesta quinta, é sobre isso. A ideia de que, no mundo, é possível encontrar alguém que enxergue e ame quem você realmente é. Mas se você mesmo não é capaz disso, não vai adiantar de nada.

A animação acompanha Michael Stone (voz de David Thewlis), um consultor de serviços de atendimento ao consumidor, que chega a um hotel de Cincinatti para um congresso. Deprimido e em crise existencial, ele encontra uma nova fagulha de vida ao conhecer Lisa (voz de Jennifer Jason Leigh) – a anomalia que, por uma noite, pode fazer tudo ter sentido de novo.

E a grande sacada de “Anomalisa” está na forma como o roteirista Charlie Kaufman (“Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”) e seu codiretor Duke Johnson encenam isso. Fora Michael e Lisa, todos os demais personagens, homens e mulheres, são dublados pelo ator Tom Noonan (“Damages”). O rosto dos bonequinhos do stop-motion parecem ter todos a mesma forma, e suas vozes são idênticas. E no meio dessa monossonia incômoda e opressiva, Michael descobre Lisa ao escutar uma voz diferente no corredor do hotel.

É uma cena mágica, que injeta gás e energia em um filme até então monocrômico e melancólico – e só é superada pela genialidade do café da manhã no dia seguinte. Num mundo cada vez mais impessoal e destruidor das individualidades e diferenças, ela representa a possibilidade de ser visto como “eu”, ao invés de “alguém” – o que fica claro na sequência de sexo mais autêntica e romântica do ano.

E Kaufman se confirma como um dos melhores roteiristas do cinema nesta quinta ao trabalhar esse tema nos mínimos detalhes de “Anomalisa”. A locação do filme em um hotel – um dos espaços mais impessoais e sem personalidade possíveis – não é por acaso. Assim como a profissão do protagonista, especialista em SACs – que, na tentativa de tratar todos como “senhor” e “senhora”, estão entre os maiores destruidores da individualidade alheia hoje.

Em contraponto a todo esse universo, os diretores e Jennifer Jason Leigh criam uma Lisa que é calor e subjetividade em um mundo frio e distante. A atriz consegue construir toda uma personalidade apenas com a voz (o único, e bem-vindo, som feminino do filme), misturando picos de paixão e poços de insegurança, que ela sintetiza (junto com todo o filme) em uma performance de “Girls Just Wanna Have Fun” que vai te levar ao riso e às lágrimas ao mesmo tempo.

Se “Anomalisa” sofre de alguma coisa, é de um certo déjà vu. A animação explora os mesmos temas existenciais de individualidade e solidão que Kaufman discutiu em “Adaptação”, “Brilho Eterno”, “Quero Ser John Malkovich” e “Sinédoque, Nova York”, sem ser especialmente superior a nenhum deles. O que o filme acrescenta ao panteão é o uso das possibilidades da animação, principalmente no áudio e fisicalidade dos bonecos, para extrapolar as viagens do roteirista.

Elementos como a bela e sutil trilha de Carter Burwell, por exemplo, acabam remetendo inevitavelmente ao trabalho de Jon Brion nos longas anteriores. A busca por individualidade não é fácil, e ser perfeito é impossível. E é preciso se amar assim mesmo. E é sobre isso que “Anomalisa” é.

Outras estreias

Embora “Os Dez Mandamentos”, adaptação da novela da Record, ocupe grande parte das salas de cinema da cidade, ainda sobrou espaço para a comédia “Pai em Dose Dupla”, a aventura “Os Caçadores de Emoção” e o tocante “O Sabor da Vida”.