Pré-estreia

Comédia sueca vencedora da Palma de Ouro chega à BH

“The Square: A Arte da Discórdia que provar é que a civilização – a arte, o discurso intelectual, a racionalidade – é uma encenação

Por Daniel Oliveira
Publicado em 28 de dezembro de 2017 | 03:00
 
 
No centro, a performance central do filme; e abaixo o protagonista, vivido por Claes Bang Pandora / divulgação

O Quadrado do título original de “The Square: A Arte da Discórdia” é uma obra de arte que consiste em uma delimitação geométrica, dentro da qual “todos são iguais, devem ter cuidado e ser gentis uns com os outros”. Mas, como a própria artista ressalta, ele é “uma moldura vazia esperando seu conteúdo”. E depois de explicar isso para o público e declarar sua “extrema” admiração pela obra, o protagonista passa o resto do filme tomando decisões que são o exato oposto de sua proposta.

Porque o longa, que venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes e tem sua pré-estreia nesta quinta-feira (28), é isso: um retrato cáustico e extremamente engraçado da hipocrisia da elite branca liberal politicamente correta – o que o torna um primo sueco alternativo do recente “Corra!”.

Para o diretor Ruben Östlund, o discurso dessa elite é vazio e esteticamente aprazível como o Quadrado, mas o real conteúdo dentro dela esconde uma história bem diferente.

A síntese disso é o protagonista Christian (Claes Bang). Curador do X Royal, um museu de arte moderna e contemporânea em Estocolmo, ele é furtado na rua às vésperas da abertura da nova exposição – da qual o Quadrado é o destaque. Instigado por um colega, decide rastrear seu celular, ir até o prédio onde ele se encontra e distribuir em todos os apartamentos uma carta ameaçando o ladrão e exigindo a devolução de seus pertences.

Quase desnecessário dizer, o conteúdo da carta (ataque a um monte de gente pobre sem provas) é o extremo oposto do manifesto do Quadrado (“seja gentil”). E suas consequências transformarão a vida do personagem em um “Depois de Horas” imprevisível, uma espiral caótica que é o espelho invertido do cabelo e dos ternos perfeitos de Christian.

Porque o que Östlund e seu filme querem provar é que a civilização – a arte, o discurso intelectual, a racionalidade – é uma encenação. Que o homem civilizado é uma performance tão vazia quanto o Quadrado – uma moldura escondendo a barbárie que habita dentro de todos nós. “The Square” usa esse estudo de personagem para desancar e questionar a hipocrisia e a fragilidade dessa moldura.

A verdade é que, da comunicação ao mundo das redes sociais, da cultura viral à imprensa, ninguém escapa da mira debochada do roteiro de Östlund. Assim como em “Força Maior”, seu elogiado longa anterior, o cineasta explora o humor do desconforto, com cenas longas que visam tirar o espectador da sua posição cômoda e passiva.

Das interrupções bizarras à palestra do artista vivido por Dominic West (“The Affair”) à tensa entrega das cartas no prédio, é impossível ficar indiferente às provocações do longa – você pode até não rir (o que é difícil), mas isso será mais uma questão de gosto cômico do que de incompetência da produção. E é na sequência mais famosa do filme, uma performance insana durante um jantar, que “The Square” sintetiza sua proposta: até onde uma obra precisa ir para obter uma reação verdadeiramente autêntica, instintiva, visceral, não-programada, de seu interlocutor?

E a grande ironia é que, com quase duas horas e meia de duração, a maior falha de “The Square” é não encontrar – ou ultrapassar – essa linha. O longa tem uma chance de se encerrar próximo à marca das duas horas, num plano em que Christian se encontra preso entre a porta e o portão de seu prédio – encurralado por seus próprios mecanismos de defesa de homem branco-bárbaro rico, de classe média-alta – o que faria dele uma obra quase perfeita. Mas Östlund decide se estender por mais 20 absolutamente desnecessários minutos, que tentam redimir um protagonista que não precisa de redenção; explicar um subtexto que já suficientemente bem claro; encenar uma coletiva de imprensa expositiva, que diminui a produção e expõe as fragilidades do roteiro; até chegar a um fim que tenta trazer para o primeiro plano paralelos políticos que não são seu elemento central.

Essa falta de autoedição e essa paixão embriagada pela própria genialidade é o maior pecado de “The Square”. Até mesmo Anne, a jornalista vivida pela Elizabeth Moss de “The Handmaid’s Tale” (uma deusa dourada da atuação que eleva os diálogos e as cenas mais banais), não faria diferença se suas cenas fossem cortadas do filme. Mas nada disso diminui os méritos das duas primeiras horas de “The Square” ou as tornam menos imperdíveis, assim como a performance impecável de Claes Bang – um homem branco, bonito, talentoso e europeu (ou seja, vai ser o vilão do próximo James Bond). Östlund pode encher o vazio de seu Quadrado com coisas demais, mas – assim como em várias obras de arte contemporânea – a experiência compensa a possível indigestão posterior