Literatura

Conexões além das páginas

Pregando fidelidade ao texto, produções televisivas reproduziram aspectos considerados racistas na obra de Lobato

Por Carlos Andrei Siquara
Publicado em 16 de setembro de 2018 | 03:00
 
 

Grande parte da popularidade da obra de Monteiro Lobato (1882-1948) também se deve às versões para TV das histórias da coleção “Sítio do Picapau Amarelo”. Essas adaptações declaravam fidelidade ao texto do escritor e, consequentemente, acabaram reproduzindo nas telas aspectos que só depois foram questionados na ficção de Lobato, em razão do cunho racista.

A escritora mineira Cidinha da Silva relata ser leitora entusiasmada dessas narrativas desde a infância, mas conta ter sentido mais o peso dessas questões raciais quando o conteúdo foi mostrado na TV. Tal percepção ela conta ter elaborado melhor já na idade adulta. “No programa de TV, percebi mais a estigmatização das personagens negras, como Tia Anastácia e Tio Barnabé, principalmente. Eram imagens e construções de personagens que me incomodavam ainda na infância, mas eu não sabia elaborar o incômodo”, relata Cidinha.

“No início da juventude, com mais instrumental crítico, consegui compreender o quanto as personagens negras eram subalternizadas e, ao conhecer mais o autor e sua perspectiva eugenista, pude decodificar a intencionalidade racista daquela subalternização”, frisa ela.

Cidinha, inclusive, alude às relações de poder identificadas entre as personagens Dona Benta e Tia Anastácia na crônica “O Livro de Receitas da D. Benta”. O mote do texto é uma anedota envolvendo o tradicional e best-seller título, que, curiosamente, homenageia a personagem de Lobato, que, no fim das contas, não cozinhava, pois era Tia Anastácia a responsável pelas guloseimas servidas no sítio.
Na crônica, Cidinha mostra como o ocultamento dos conhecimentos e saberes de Tia Anastácia extrapola as páginas e é reproduzido no projeto editorial de um produto com mais de 1 milhão de exemplares vendidos. Para a autora, uma maneira de romper com essas heranças, sem abandonar os importantes escritos de Lobato, é contextualizando a filiação política do autor com as teorias eugenistas que surgiram no século XIX com intenção segregacionista a favor dos brancos. 

“Isso é fundamental para discutir as condições ideológicas de produção da obra de Lobato e suas intencionalidades, para além de uma defesa evasiva de que ele seria ‘um homem do seu tempo’. Ora, Lobato era um homem racista do seu tempo, havia outros intelectuais que não eram. Ser racista não configurava uma imposição da qual não se pudesse fugir, não era questão de vida ou morte para um escritor. Tratava-se de opção ideológica muitíssimo refletida e arquitetada, como demonstram as cartas que o autor trocava com outros membros do movimento eugenista brasileiro”, defende Cidinha. 

Milena Ribeiro Martins, especialista em Lobato e professora da Universidade Federal do Paraná, também ressalta que, em vez de inibir a circulação dessas obras, é fundamental revisitá-las, reconhecendo seu potencial provocador, sem abrir mão de uma perspectiva crítica sobre o legado de Lobato.

“Nós não precisamos corrigir o passado, mas nós precisamos nos posicionar em relação a ele. O passado existiu, e ele é uma dor, um trauma. A escravidão é um trauma que nós precisamos enfrentar, e não silenciar. Por isso é tão importante ler os escritores que, de alguma forma, estão lidando com esse tipo de situação”, afirma Milena.

Sinal verde para novas versões

Se, a partir de 2019, novas edições dos textos de Monteiro Lobato poderão vir à tona com maior facilidade, em razão das obras do escritor entrarem em domínio público, é provável que montagens teatrais, cinematográficas, entre outros trabalhos nas mais diversas linguagens, também tenham sinal verde para serem produzidas. A professora e especialista em Lobato Milena Ribeiro Martins vê esses possíveis desdobramentos como algo muito positivo e acredita que eles têm potencial para trazer frescor ao legado do criador de “Sítio do Picapau Amarelo”.

“Eu estou com bastante esperança de que surjam trabalhos muito bons. Eu acho que os escritores vão ter mais liberdade de propor continuações ou reescrituras de histórias a partir da sua própria voz ou junto com a voz de Lobato”, relata Milena.

Para ela, a liberação dos direitos autorais deverá impulsionar artistas e escritores a imaginar aspectos ligados aos personagens de Lobato, mas que não são explorados em suas histórias. “Sempre que tenho a oportunidade, gosto de estimular meus alunos a pensar em como terá sido a infância de Tia Anastácia ou quem é a mãe de Narizinho. Lobato não fala da mãe dela, nem da infância de Tia Anastácia, que sabemos que foi escravizada. Então, como se dá essa relação dela com Dona Benta?”, indaga Milena.