Mostra de Tiradentes

Contos de folclore sangrento 

Principais nomes do terror apresentam uma antologia de curtas que narram versões macabras de mitos brasileiros

Por Daniel Oliveira
Publicado em 26 de janeiro de 2015 | 04:00
 
 
Capítulos. As cinco partes são costuradas por um grupo de crianças que conta histórias na floresta, inspiradas na infância de Aragão Fábulas Negras/ divulgação

Tiradentes. Em tempos de ameaça de falta de água para o banho diário, em que a ciência e a tecnologia do país são administradas por líderes religiosos e um potencial estuprador tem voz e vez no congresso nacional, é preciso ser cego para não ver que o Brasil se tornou o cenário perfeito para um filme de terror. Adicione a riqueza dos mitos e criaturas do nosso folclore, e as tantas possibilidades de alegorias macabras quase farão o sangue escorrer pela boca. 

É exatamente isso que o cineasta capixaba Rodrigo Aragão e seus comparsas põem em prática em “As Fábulas Negras”, obra que inaugurou a “sessão da meia-noite” na Mostra de Cinema de Tiradentes, na madrugada do sábado para o domingo. Um dos principais realizadores do gênero no Brasil hoje, Aragão convidou três colegas das artes macabras para uma antologia de cinco curtas de terror inspirados em mitos nacionais.

O mestre José Mojica Marins, que não compareceu a Tiradentes por motivos de saúde, faz sua versão de “O Saci”. O gaúcho Peter Baiestorf retrata um lobisomem do sul em “Pampa Feroz”. O paulista Joel Caetano explora uma lenda urbana em “A Loira do Banheiro”. E Aragão assume o comando de “O Segredo da Iara” e “O Monstro do Esgoto”.

“Mojica é um mestre dos anos 1960 e 70. Peter fazia terror na década de 90. Eu comecei nos anos 2000 e o Joel é uma promessa recente com curtas premiados. Achei bacana ter estilos e pinceladas diversos para contar essa história, gerações e olhares diferentes sobre esse assunto”, explica o capixaba.

Amarrando os cinco capítulos, há um grupo de quatro crianças vestidas de super-heróis, que brincam na floresta e contam as histórias aos amigos. “São crianças diferentes, cada uma com seu caso, então isso justifica o tom de cada diretor, o ritmo de montagem, as cores e saturação da imagem”, explica Aragão.

Essa liberdade, associada à estrutura oferecida pela experiência da produtora de Aragão (que leva o mesmo nome do filme, Fábulas Negras), foi o que atraiu os outros realizadores. “É como um relógio: já está tudo certo, os figurinos, os atores. É bacana ter essa estrutura e criar em cima dela”, afirma Joel Caetano, que transformou a lenda da loira do banheiro em um filme de fantasma com influências do cinema japonês, norte-americano e italiano.

A primeira escolha de Peter Baiestorf era o Curupira, mas o orçamento e a experiência prévia da produtora com maquiagem e animatrônica convenceram o gaúcho a explorar o mito do lobisomem. “Queria contar um faroeste caipira brasileiro. Misturei lendas urbanas nacionais e apelei para uma bagagem cinematográfica com um toque do sul, filmado no Espírito Santo”, diz.

Toda essa estrutura, porém, não significou menos desafio. Cada um dos diretores teve apenas uma semana para filmar sua história. “Mesmo trabalhando com cinema de gênero, o que a gente está fazendo é cinema de invenção. Encontrando uma forma de dar vazão ao que queremos contar”, considera Baiestorf.

A genialidade de “As Fábulas Negras” é que, como em toda boa obra de gênero, essa inventividade trash e gore (com uma barata de 3 metros e a explosão de um político corrupto de 160 quilos) serve a divertidos comentários sociais sobre questões atuais.

Em “O Saci”, Mojica ataca o fundamentalismo evangélico. Caetano aborda o bullying com sua Loira, enquanto Baiestorf retrata o machismo e o conservadorismo dos Pampas. Já “O Monstro do Esgoto” é uma parábola política sobre Guarapari, cidade onde nasceu Rodrigo Aragão.

“Para se ter um cinema rico, é preciso ter todos os gêneros. Espero fazer um ‘volume 2’ do ‘Fábulas Negras’ com outros diretores”, projeta o capixaba, na sua luta por um cinema nacional mais sangrento.

O repórter viajou a convite da mostra.

Circuito

“As Fábulas Negras” foi financiado pelo produtor independente Hermann Pidner, sem apoio estatal, e ainda não tem distribuidor nacional. O filme já é aguardado em festivais na Espanha, México, Argentina, Grécia, Alemanha e Holanda, e deve ser distribuído no Japão, onde Aragão lançou todos os seus longas.