Mostra de Cinema de São Paulo

Diretor de 'A Casa de Alice' volta a dramas familiares com 'Ausência'

Filme de Chico Teixeira acabou de ganhar o grande prêmio do júri no festival do Rio

Por Daniel Oliveira
Publicado em 20 de outubro de 2014 | 17:43
 
 
Cena do filme Ausência Divulgação

É impossível não notar as narrativas criadas pelos programadores de um festival. Não é nem um pouco por acaso que “Ausência”, segundo longa de ficção do diretor Chico Teixeira após a ótima estreia com “A Casa de Alice”, tenha estreado na mostra de cinema de São Paulo logo depois da sessão de “Dois Dias, Uma Noite” dos irmãos Dardenne, que o cineasta brasileiro cita como uma clara influência de seu trabalho. Mas enquanto os realizadores belgas estão interessados nas decisões morais de seus personagens como portas de entrada para a análise da sociedade operária que eles retratam, Teixeira usa essas escolhas para entender os complexos laços de família.

Ou no caso deste novo longa, como o título já deixa claro, na ausência deles. O filme, que acabou de ganhar o grande prêmio do júri no festival do Rio, começa quando o pai de Serginho (Matheus Fagundes) abandona a família, deixando o garoto de 15 anos como chefe da casa. “Queria falar sobre abandono, o que a gente faz quando alguém se ausenta da sua vida: seu pai, sua mãe, namorado”, explica Teixeira, que perdeu o pai aos 17 anos.

Para o diretor, ou a pessoa fica se lastimando o tempo todo, ou tenta preencher o buraco com outras pessoas. “E essa trajetória emocional é fascinante pra mim. Quando faço um filme, falo de alguma coisa que está me angustiando, para evoluir emocionalmente e mergulhar dentro de alguma coisa que me incomoda”, confessa. Mas se em “A Casa de Alice”, esse vazio era causado pela falsidade e hipocrisia dos alicerces que sustentavam aquela família, aqui ele é resultado de um buraco real – a ausência do pai, patologia sociológica que afeta cerca de 25% dos lares brasileiros.

Sem o progenitor, o cotidiano de Serginho se alterna entre ser o pai/marido de Luzia, sua mãe alcoólatra (Gilda Nomacce, ‘de “Trabalhar Cansa”); trabalhar com o tio na feira; visitar um Professor (Irandhir Santos), que ele usa para tentar substituir a figura paterna; e ir a um circo local com o irmão para se lembrar de que, apesar das responsabilidades, ainda é uma criança. “Ele é um menino com a solidão de um adulto. Mas por ter 15 anos, ele não tem a estrutura emocional de um adulto, não consegue segurar a onda”, descreve o diretor.

E para encarnar essa dualidade, desafiadora mesmo para um veterano, Teixeira conta com a revelação do estreante Matheus Fagundes, que levou o prêmio de melhor ator no festival do Rio. Escolhido entre 153 jovens (após um deles não dar conta do tranco), o jovem paulistano tem aquele talento inerente ao grande ator de cinema, que não pede para a câmera olhar para ele, ao mesmo tempo em que oferece exatamente o que ela precisa.

“Ausência” é contado totalmente do ponto de vista de Serginho, e Fagundes carrega quase todas as cenas, fazendo o espectador sentir toda a frustração, o abandono e o desamparo do protagonista. “Ele vai te encostando na parede, até falar ‘agora eu estou sozinho’”, afirma o cineasta. E a agonia causada pelo ritmo lento da narrativa é porque, assim como o garoto, você espera por algo que preencha o vazio que ele sente – e o filme, pelo contrário, só vai tirando um a um os frágeis pilares que lhe sustentam.

E é graças à sutileza de Fagundes que uma das melhores cenas do filme, em que o protagonista expressa essa carência com um pedido ao mesmo tempo singelo e devastador ao professor, escapa do apelo melodramático e se torna um soco emocional que você leva quase sem perceber. Essa relação com o personagem de Irandhir Santos, que se reafirma aqui como o melhor ator do cinema brasileiro hoje, é um dos elementos mais interessantes do longa – misturando conotações edipianas, paternas, sexuais, sem jamais explicitar ou escolher nenhuma delas.

“Irandhir me disse ‘esse professor sou eu. Quero fazer”, conta Teixeira, imitando o sotaque pernambucano do ator. A escolha faz sentido: assim como seus personagens em “Tropa de Elite 2”, “Tatuagem” e “A História da Eternidade”, o Professor é mais um sujeito que busca inspirar e proteger as pessoas ao seu redor, mas que também tem esqueletos no armário e não é um santo.

E quando o personagem é confrontado com o que Serginho espera dele, e as responsabilidades que isso acarreta, as cenas em que o Professor diz algumas duras verdades ao garoto se tornaram as mais difíceis de filmar, devido à ligação e ao afeto surgido entre os dois atores. “O Irandhir veio me dizer ‘não sei o que faço com esse menino’. E eu disse ‘eu também não. Vamos descobrir juntos’”, recorda o diretor.

Além de Fagundes e Santos, o ótimo elenco de "Ausência" – que Teixeira filma em longos planos e enquadramentos únicos, como um teatro familiar – é completado por Gilda Nomacce como Luzia. Assim como a Alice de Carla Ribas, o abuso e a codependência emocional da personagem confirmam o talento do cineasta para escrever grandes personagens femininas. “Sou um homem criado por quatro mulheres. Tenho uma alma feminina. Adoro escrever mulher porque entro na que existe dentro de mim”, revela o diretor.

Não por acaso o próximo filme do cineasta vai girar em torno de uma senhora de 70 anos, com o título provisório de “Dolores”. Resta torcer para que não demore mais sete anos, como o hiato entre “Alice” e “Ausência”, que Teixeira justifica com sua necessidade de foco total para escrever, e a incapacidade de fazer duas coisas ao mesmo tempo. “Se estou conversando com você, não consigo escutar a mesa do lado”, diz o homem feminino, mas que não sabe mascar chiclete e andar ao mesmo tempo.


* O repórter viajou a convite da Mostra São Paulo