Quadrinhos

Em transição para o feminino 

“Malu, Memórias de Uma Transé um dos primeiros trabalhos do gênero a ter como protagonista uma transexual

Por Carlos Andrei Siquar
Publicado em 11 de janeiro de 2014 | 04:00
 
 
Ao longo da história, Malu descobre redes de solidariedade cordeiro de sá/reprodução

Se no ano de 2012 a homossexualidade e o casamento gay ganharam representatividade inédita no mundo internacional dos quadrinhos, com personagens de grandes editoras, como a Marvel e a DC Comics, saindo do armário, no ano passado, o segmento continuou abarcando novos passos nessas questões. Um exemplo foi o beijo trocado entre os personagens Hércules e Wolverine na décima edição da série “X-Treme X-Men”, publicada pela Marvel.

No Brasil, além das tirinhas de Laerte, que trazem Hugo Baracchin experimentando acessórios e roupas femininas, até assumir a identidade Muriel, desde 2004, são poucos os trabalhos centrados também no aspecto da transição entre gêneros. Ampliou esse cenário, no fim de 2013, o romance gráfico “Malu, Memórias de Uma Trans”, do arquiteto e artista visual paulista Cordeiro de Sá.

Convidado para participar de diversos debates e mesas desde a realização do projeto que lhe tomou dois anos de pesquisa, Cordeiro, inclusive, no dia 18 de janeiro, viaja de Ribeirão Preto, onde vive, a São Paulo para fazer novo lançamento desse livro no Museu da Diversidade, na capital paulista. A edição, com roteiro e desenhos assinados por ele, saiu em 5.000 exemplares, com o apoio da Secretaria Municipal da Cultura de Ribeirão Preto.

A repercussão, de acordo com ele, tem sido crescente desde dezembro passado, quando a transexual Agatha Lima embarcou para Brasília e levou alguns títulos ao Fórum Mundial de Direitos Humanos. De lá, o material seguiu viagem para 72 países. “E assim tem acontecido a circulação do livro. Nós contamos com a colaboração das pessoas que se interessam em levar a HQ em eventos e outras ocasiões. Nós não temos uma rede de distribuição. Quando viajo, eu levo algumas e digo às pessoas que elas podem pegar um exemplar para elas e outro para alguém que considera legal. Outra forma de as pessoas lerem é por meio da internet. O livro inteiro está disponível online”, explica Cordeiro de Sá.

Foi Agatha que o auxiliou nesse percurso, quando ele começou a conceber a história de Malu. Como uma consultora, ela trouxe ao quadrinista casos relacionados a travestis, gays, lésbicas e transexuais, reunindo importantes referências da vida real. De acordo com Sá, foi decisivo nesse processo a sua inquietação com a violência e a discriminação sofrida por essas pessoas desde a infância e sua proximidade com a história de Alessandra, que ele conheceu na infância em Valinhos (SP), mas que só foi reencontrá-la, anos depois, no Orkut. “Eu comecei a conversar constantemente com ela via MSN e Orkut, acompanhando, assim, o seu processo de transformação”, diz.

Cordeiro acrescenta que, em outro momento, uma situação envolvendo Alessandra o deixou ainda mais preocupado com a intolerância das pessoas e isso contribui para levar adiante seu objetivo.

Lado a lado em um ônibus indo a São Paulo, os dois conversavam amenidades, “como a receita do bolo de fubá da avó, ou uma antiga amiga que não viam há muito tempo”, quando eles notaram o incômodo dos outros passageiros com o diálogo.

“Foi muito estranha a maneira como as pessoas reagiram. Talvez se eu estivesse combinando um programa e estivesse falando sobre sexo seria menos impactante do que conversarmos sobre as coisas do cotidiano. A partir disso, eu achei que precisava fazer um documentário sobre o tema. Eu trabalhava com vídeo na época, mas depois acabei optando pelos quadrinhos”, conta.

Disposto a colocar em texto e quadros a narrativa, ele ponderou que essa não representaria literalmente a trajetória de Alessandra, mas a de várias outras pessoas que apresentam percurso semelhante. Ele buscou percorrer os passos de alguém que enfrenta conhecidos desafios desde os primeiros anos de vida, passando pela escola até a idade adulta. “Eu me concentrei especialmente na questão dessa procura por um identidade e tentei me colocar na pele de uma pessoa que luta contra todas as dificuldades, a partir dessa condição, para sobreviver no dia a dia. O convívio social, o emprego, a prostituição, são alguns temas que aparecem, evidenciando contextos que lhe são impostos”, relata.

A violência e o preconceito, de acordo com o autor, são ressaltados especialmente porque aparecem refletidos em diferentes gradações ao longo da vida da personagem. Assumindo características muito próximas das heroínas das histórias tradicionais, Malu supera o contexto encontrando a solidariedade dos amigos e a conscientização política.

“Eu tentei chamar atenção para o fato de que, antes de qualquer coisa, de serem transexuais, estamos lidando com pessoas, em sua maioria bastante criativas e corajosas, pois precisam enfrentar não só a família, mas a sociedade e seus diversos tabus. Elas precisam inventar estratégias de sobrevivência o tempo todo, se esforçando mais que qualquer um para realizar tarefas básicas como trabalhar ou ir simplesmente ao banheiro”, diz Cordeiro de Sá.

“Mesmo sendo fortes, criativas e corajosas, por que essas continuam à margem da sociedade desse jeito? Provocar essa reflexão, além de nos impulsionar a pensar sobre temas que quase nunca tem visibilidade por preconceito é o que espero desse trabalho”, conclui o quadrinista.

 

Na internet

A HQ “Malu, Memórias de Uma Trans”, pode ser lida gratuitamente por meio do perfil do autor, Cordeiro de Sá, na plataforma virtual Issuu.

Acesse: http://issuu.com/ cordeirodesa